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04/07/2024 às 08h00min - Atualizada em 04/07/2024 às 08h00min

Tarja branca

IVONE ASSIS
Nos últimos tempos, tem-se visto uma corrida em busca da descoberta do leitor. E não poderia ser diferente, pois, esse indivíduo corre o risco de se tornar uma joia rara, dessas que todos sabem que existe, mas ninguém vê. Parafraseando Lima Barreto, podemos dizer que este é o triste fim de uma era do saber.

O balancete final apresenta um cálculo base inversamente proporcional, em que o mercado cresce em número de autores e diminui em leitores. Nos ditos eventos literários, os colegas convidados não se doam nem a ouvir, nem a comentar a fala do colega de mesa, porque estão ocupados demais em se concentrar em sua própria fala, já vista, revista e decorada. 

Depois, encontram desmotivos para saírem antes do término, para não usufruir da educação de ouvir os que falarão depois, também não compram livros, porque já estão ocupados demais em ler os seus próprios escritos e vender seu próprio peixe. É similar a um processo de inveja, em que um está sempre querendo superar o outro. É como se o destaque valesse mais que o conhecimento. Resumo da ópera, todos querem ser lidos e ouvidos, mas poucos são os recíprocos.

Se o livro imortaliza o autor, a figura do ledor, em autoridade maior, tem o papel de promover a imortalidade do próprio livro. Ou seja, livro que não é lido morre junto com seu autor. 

Por mais que haja evolução civilizatória, o princípio continua arraigado do desejo de prolongar a própria vida, ou melhor, promover a auto imortalidade. Sem dúvida a literatura é um eficiente antídoto contra o desaparecimento de uma bio, mas, como todo remédio, o efeito só irá surtir se for ingerido na ministração adequada, inclusive obedecendo as tarjas.

Um livro sem tarja pode ser consumido livremente, não necessitam de professores para interpretação. No entanto, seus “MIPs” literários devem cumprir com todos os demais pré-requisitos de qualidade, de saberes e eficácia exigidos pela legislação editorial em vigor. Inclusive, deve constar na lista de livros catalogados, é ali que mora sua indicação adequada conforme a ignorância (a doença) que irá tratar. Essa tarja é para doenças leves.

O livro tarja amarela, pertence aos medicamentos genéricos, e deve ser ministrado conforme sua catalogação. Essa tarja indica que o livro foi editado por editores diversos, valendo observar a segunda tarja que ele traz em sua embalagem (branca, vermelha ou preta), porque é aí que mora a diferença.

Por livro tarja vermelha, entendamos as literaturas que exigem mais aprofundamento, melhor interpretação, e se usado corretamente, leitor e escritor estarão bem, seja com ou sem a retenção de receita, conforme os riscos.

Por último, vem o temido livro tarja preta. Esses dispensam comentários, porque a responsabilidade de quem usa e de quem ministra já falam por si.

Ainda, como medicamentos, as letras ostentadas na identificação do título do livro devem ser de leitura fácil. Por fim, o Ministério da Sabedoria adverte: bons livros devem ter ampla distribuição por meio de programas competentes, porque ler bons livros faz bem à saúde.

Assim sendo, a boa leitura tem o poder de esticar a vida do autor, por meio da obra. E a saúde do livro, bem como a qualidade da escrita são essenciais para a realização do processo.

É essencial o ponto de equilíbrio entre leitura e escuta, leitor e ouvinte. É esse equilíbrio que ameniza a loucura do inquisidor que nos exige a leitura e o (des)equilíbrio do texto em si, permitindo-nos, enquanto leitores ou contadores, alcançar salvação, cujo episódio ocorre por meio da palavra.

Pensemos em como Sherazade fez uso do verbo para alcançar as mil e uma noites ao lado de seu algoz. As histórias são medicações para a alma. Foi por meio da qualidade da história, complementada pela qualidade da leitura (neste caso, a contação) que a princesa Sherazade, condenada à morte, muda o pensamento do implacável soberano, o sultão Sharyar, e se mantém viva, narrando a ele histórias tarja branca.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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