Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90
13/06/2024 às 08h00min - Atualizada em 13/06/2024 às 08h00min

O Processo

IVONE ASSIS
“Entre os dois, existiam o maior abismo que possa separar um ser do outro. Ela falava, ele era mudo. Ela era mulher; ele, um cão. Assim, intimamente ligados. Assim, imensamente separados, um encarava o outro” (WOOLF, 1933). Nesse recorte de “Flush: memórias de um cão”, Virginia Woolf, desassossega o leitor, que pensa estar lendo uma literatura menor, mas se depara com uma questão existencial muito intensa, cujo limiar (o silêncio), também é a ponte que liga os dois seres (mulher e cachorro; homem e carta). É que Flush, é uma escrita inspirada nas cartas do casal inglês Browning; ele ausente em suas viagens; ela, presa em sua fragilidade.

Talvez, por se identificar com esse silêncio, uma vez que Virginia vivia enclausurada em seu próprio silêncio, mas precisa se contrapor todos os dias, para viver a Woolf escritora, talvez por isso, ela quis, inspirada nas cartas de Elizabeth Browning e Robert Browning, dar vida a Flush.

Na tradução de Manuel Bandeira, li um soneto de Elizabeth Browning que diz: “Amo-te quanto em largo, alto e profundo / Minh’alma alcança quando, transportada, / Sente, alongando os olhos deste mundo, / Os fins do Ser, a Graça entressonhada. // Amo-te em cada dia, hora e segundo: / À luz do Sol, na noite sossegada. / E é tão pura a paixão de que me inundo / Quanto o pudor dos que não pedem nada. // Amo-te com o doer das velhas penas; // Com sorrisos, com lágrimas de prece, / E a fé da minha infância, ingênua e forte. / Amo-te até nas coisas mais pequenas. / Por toda a vida. E, assim Deus o quiser, / Ainda mais te amarei depois da morte”.

Tanto Virgínia, como o casal poeta, amavam os cães, e sabiam bem o valor da fidelidade felina e o valor dos gritos do silêncio.

Creio que “Flush” foi um momento que Virginia Woolf quis se trazer nas entrelinhas. A crítica literária exige muito do escritor, sobretudo no caso de Woolf, que, sendo uma autora e editora muito conceituada na sociedade de seu tempo, não teve espaço para viver a Adeline Virginia Stephen, tudo foi exclusivo para Virginia Woolf. De repente, ela se depara com as cartas de amor dos vitorianos Browning, que também precisaram lidar com a ruptura e o silêncio.

Nas cartas, Virginia Woolf encontrou um cocker spaniel igualzinho ao seu, raça, comportamento, valores... Então, optou por, não apenas homenagear aquele casal apaixonado – senhor e senhora Browning – mas ainda alfinetar a desvairada sociedade que prefere fechar os olhos e tratar da ferida do outro.

Flush é uma obra de fases, ou seja, é literatura juvenil para os adolescentes, mas é crítica social para o pesquisador, sobretudo o pesquisador que se preocupa com a voz extraída do silêncio humano. Não é drama ou literatura água com açúcar, é revelação de reflexões silenciadas, é explosão de sentimentos, é confusão de interpretações dos apressados que não tem aprimoramento olfativo. 

Afinal, a vida é feita de cheiros, e é preciso um olfato apurado para encontrar as pistas que nos levam à essência do propósito almejado. Esse ponto é relevante para que se entenda o paralelo que a autora quis mostrar nesta relação entre humanos e cães; entre narrativas e silêncios; entre escritora e pessoa humana.

A escritora é esta que todos sabem, e falam, e opinam, e ferem, e consolam, com suas leituras, análises, críticas... mas a mulher, as Adelines, as Elizabeths... são aqueles corpos que têm um coração pulsando, uma mente pensando, uma emoção dilacerando... mas que o espaço-tempo não permite viver, atribuindo-lhes uma condição de “vida de cão”, sujeita ao silêncio, à subserviência, ao atender anseios daqueles que garantem o sucesso na sociedade.

A ironia da obra é maior que o desejo de compreensão imediata do leitor. O livro vai se construindo entre sutilezas, afeto, ciúmes, silêncios... com a talagada de humor que um livro assim exige, e com a dose de deboche que a condição humana pede. Se a biografia é de Flush, o cãozinho, não sei, mas que a voz do eu lírico é a de uma multidão, contra fatos não há argumentos. E, assim, Woolf cria pontes para o processo.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
Leia Também »
Comentários »
Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90