Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90
27/06/2024 às 08h00min - Atualizada em 27/06/2024 às 08h00min

Entrelaçar de histórias

IVONE ASSIS
Hoje, pela manhã, enquanto escolhia o maracujá para fazer o chá, lembrei-me da antigo Emblema clássico da Biblioteca Nacional do Brasil, criado por Eliseu Visconti, em nanquim e guache, no ano de 1903. Aquele símbolo era um globo e, ao mesmo tempo, era um fruto de maracujá, todo ornado para exuberante flor do maracujá. De fundo, os livros clássicos, em capa dura, e uns botões de maracujá, aguardando sua hora de abrir. 

Dizem que A Flor de Maracujá significa “Paixão”, ainda que não fosse, não há como não se apaixonar por ela. É uma flor de absoluto enigma, beleza e encantamento. Imagino que Eliseu Visconti deveria estar tomando um chá de maracujá, como eu, quando teve a brilhante ideia de criar esse símbolo. Ainda, possivelmente, estava a ler o poema “A flor do maracujá”, do senhor Luís Nicolau Fagundes Varella, o nosso clássico Fagundes Varela, poeta brasileiro, patrono na Academia Brasileira de Letras, que minha professora goiana Laurinda Barbalho, tanto admirava e insistia para que aprendêssemos sua obra.

O problema é que estávamos tão preocupados em obter nota máxima nas provas, que nos esquecemos de degustar, merecidamente, o chá de poesia de Varela. Agora, quando a velhice vem batendo à minha porta é que percebo minha tolice juvenil.

Varela (1841-1875), em seu poema “A flor do maracujá”, escreve: “Pelas rosas, pelos lírios, / Pelas abelhas, sinhá, / Pelas notas mais chorosas / Do canto do sabiá, / Pelo cálice de angústias / Da flor do maracujá! // Pelo jasmim, pelo goivo, / Pelo agreste manacá, / Pelas gotas do sereno / Nas folhas de gravatá, / Pela coroa de espinhos / Da flor do maracujá! // Pelas tranças da mãe-d'água / Que junto da fonte está, / Pelos colibris que brincam / Nas alvas plumas do ubá, / Pelos cravos desenhados / Na flor do maracujá! // Pelas azuis borboletas / Que descem do Panamá, / Pelos tesouros ocultos / Nas minas do Sincorá, / Pelas chagas roxeadas / Da flor do maracujá! // Pelo mar, pelo deserto, / Pelas montanhas, sinhá! / Pelas florestas imensas / Que falam de Jeová! / Pela lança ensanguentada / Da flor do maracujá! // Por tudo o que o céu revela! / Por tudo o que a terra dá / Eu te juro que minh'alma / De tua alma escrava está!... / Guarda contigo esse emblema / Da flor do maracujá! // Não se enojem teus ouvidos / De tantas rimas em — a — / Mas ouve meus juramentos, / Meus cantos ouve, sinhá! / Te peço pelos mistérios / Da flor do maracujá!”

Esse poema foi publicado no livro “Cantos meridionais” (1869, p. 49-51). Sobre o emblema de Eliseu Visconti, este representou o primeiro distintivo da Biblioteca Nacional, conforme é visto nos acervos (cartas, ofícios...). O desenho traz a passiflora, representando a flora tropical, como identidade brasileira.

Ainda o professor Aurélio Lopes de Souza (diretor interino da Biblioteca Nacional do final do século XIX e início do XX, um dos criadores do curso de Biblioteconomia), atrelando a arte à política, vê o emblema de Eliseu Visconti como sendo um corpo feminino, ao que escreve: “Não lhe cobre o corpo a clássica túnica, mas desataviadas vestes comuns. A sua atitude é de meditação: distraidamente folheia o volume que lhe está próximo [...]. Rodeiam-na os livros: são veículos das ideias, os instrumentos dos estudos. A nossa nacionalidade aí se afirma, física e politicamente. Vemo-la na configuração da nossa terra, a salientar-se por traços paralelos, sobre o globo terrestre, de entre as demais da Sul América. [...] é da natureza desta exprimir tendências, paixões, aptidões; tem, pois, uma feição pessoal, que não combinaria muito com o caráter impessoal de uma repartição pública. Assim foi melhor só ler o título da Biblioteca. É simples e severo [...]” (LOPES, 1904, n.3, p.13, in: An. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 135-136 p. 27-28).

É nesse encontro de memórias, nacionalidade, arte, poesia, que me aqueço na paixão pela história e pelo bem-viver. Assim, ao gole do chá de maracujá, vou me enroscando nesse entrelaçar de histórias.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
Leia Também »
Comentários »
Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90