Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90
22/06/2024 às 08h00min - Atualizada em 22/06/2024 às 08h00min

Vida na Sarjeta – Parte II

EDMAR PAZ JUNIOR
Foto: Reprodução/Internet
Interessante como alguns autores conseguem ser tão assertivos em suas obras e descrever com maestria os passos que uma ideologia percorrerá ao longo do tempo. Na verdade, acredito que a excelência de seus escritos não seja nem tanto pela “previsibilidade” dos acontecimentos, mas bem mais pela coerência e verossimilhança com a realidade descrita no que escrevem. Como costumo dizer, as pessoas têm perdido vertiginosamente o senso de percepção da realidade do que está à sua volta, de forma que cada vez que nos deparamos com pessoas que o fazem, ficamos maravilhados simplesmente por nos dizer o que “acontece” bem na nossa frente.

Ora, quando Dalrymple escreveu suas crônicas na década de 1990, sua intenção certamente não era a de “prever” o que está acontecendo no Brasil nos dias atuais, mas sim a de narrar o que ele enxergava que estava acontecendo naquele período. O problema foi nosso, que não nos precavemos de tais males.

Na segunda parte do seu livro, que ele nomeia como “teoria ainda mais sombria”, conta algumas histórias um pouco mais, digamos, pesadas, principalmente pelos seus desfechos trágicos, causados pelo que ele chama de “indiferença mascarada como compaixão”: há sempre uma “alma superior”, que se acha em posição moral maior que os demais, e que por isso, podem subverter a realidade e suprimir as decisões dos próprios indivíduos, julgando sempre saber o que é melhor para aqueles que sofrem as consequências de suas decisões – nunca eles. Como disse Dalrymple, “Os pobres colhem o que os intelectuais semeiam.”

Conta, por exemplo, a história de uma moça que durante anos apanhou e sofreu abusos de seu namorado, mas que um dia conseguiu fugir com sua filha para longe do agressor, para um lugar em que ele nunca as encontraria. Acontece que depois de um tempo, ela teve que fazer uma cirurgia, e mesmo contra todos os apelos e avisos sobre a vida que vivia e sobre a personalidade do ex, o serviço social inglês encontrou o pai, para que ele ficasse responsável pela criança enquanto a mãe estava no hospital. O final infelizmente foi o assassinato da criança pelo pai e sua namorada – batendo a cabeça dela na parede, várias vezes–, que viram na menina um “estorvo” para viver a vida deles. 

A primeira pergunta foi: e o serviço social, como fica com essa culpa? Fingem indiferença diante de sua intervenção? Infelizmente, quase isso. A resposta pode estar camuflada por detrás da névoa de um senso moral de superioridade embutido na mente da imensa maioria dos ideólogos – principalmente os progressistas – que apenas negam a realidade das consequências de suas ações.

Dalrymple continua em outro trecho: “O desprezo complacente destes (intelectuais) pela catástrofe social cuidadosamente forjada para aqueles (pobres) me assusta tanto quanto a própria catástrofe. Nunca tanta indiferença foi mascarada como compaixão; nunca houve tanta cegueira propositada. Os outrora pragmáticos ingleses tornaram-se uma nação de sonâmbulos.” Ora, será que é isso que estamos nos tornando – não digo nem sonâmbulos –, mas uma nação morta espiritualmente?

José Ortega y Gasset já disse uma vez que, “ser de direita ou ser de esquerda, são dois lados da mesma hemiplegia moral”, ou seja, são duas faces do mesmo derrame cerebral. Por que o filósofo espanhol já cravou esse ponto desde a década de 1920? Talvez porque para todos aqueles que olham com sinceridade para essas correntes, há a percepção nítida de que não passam de meros “esquartejadores” de mentes, que manipulam e podam o desenvolvimento humano, buscando sempre o nivelamento das ideias, e não suas transposições ou seu desenvolvimento.

É até certo ponto fácil de observar isso, principalmente nos dias atuais, nos quais temos uma imensa gama de informações disponíveis sobre a história. Peguemos o exemplo de um assunto que está num grande debate atualmente: o aborto. Da maneira como está sendo feito, em certa medida, é um debate completamente inócuo. Não há absolutamente nenhuma relação de “custo benefício” aparente que possa ser usada como desculpa para tentar impor uma “autorização legal” para assassinar crianças na barriga das mães.

O principal “vilão” que estão tentando projetar é exatamente aquela que tem menos culpa em toda essa situação: o da criança fruto de estupro, como se a criança que vai nascer fosse tão culpada quanto o próprio estuprador – na verdade é mais, porque ela vai ser morta e o estuprador não. 

É evidente que não existe uma solução simples para problemas tão complexos, e a própria questão do aborto em si é tão difícil quanto qualquer outra. O ponto que devemos observar é: onde está nossa sensibilidade com as coisas que realmente importam? Por que se discute com seriedade assuntos “banais”, como o uso de canudinho de plástico, da mesma forma como se propõe a legalização do assassinato de crianças? Esse é o principal mal das ideologias, que nos colocam em posição de defesa de uma tese – que muitas vezes nossa própria consciência sabe ser infundada – mas que são usadas num ambiente de pertencimento à um determinado grupo.

Me deparei com um trecho que está no livro “As três idades da vida interior”, do frade dominicano Reginald Garrigou-Lagrange, e deixo para vocês:

“Não confundamos aquilo que deve ser, ou deveria ser, com o que é de fato; de outro modo, chegaríamos a dizer que a verdadeira honestidade não é possível aqui embaixo, pois, de fato, em geral a maioria dos homens persegue um bem útil ou deleitável, como o dinheiro e as satisfações terrenas, antes que o bem honesto, objeto da virtude.

Em uma sociedade que declina e volta ao paganismo, muitos tomam como regra de conduta, não o dever, o bem obrigatório, que exigiria excessivos esforços em tal meio onde tudo leva a descer, mas o mal menor; eles seguem a corrente segundo a lei do menor esforço. Não apenas toleram esse mal menor, mas o fazem e, frequentemente, apoiam-se em suas recomendações para manter sua situação. E acrescentam que é para evitar um mal maior que outros fariam em seu lugar se, deixando de agradar, perdessem sua situação ou mandato. E assim dizendo, em lugar de ajudar os outros a subirem de novo, eles ajudam a descer, tratando apenas de desacelerar a queda. Quantos homens políticos estão nisso! Ora, existe alguma coisa semelhante do ponto de vista espiritual.”

A Vida na Sarjeta, Theodore Dalrymple.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.


 
Leia Também »
Comentários »
Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90