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20/06/2024 às 08h00min - Atualizada em 20/06/2024 às 08h00min

Certeza de si

IVONE ASSIS
O poema “Pontinho de vista”, de Pedro Bandeira, para mim, é uma raridade como poucos. O poeta escreve: “Eu sou pequeno, me dizem, / e eu fico muito zangado. / Tenho de olhar todo mundo / com o queixo levantado. // Mas, se formiga falasse / e me visse lá do chão, / ia dizer, com certeza: / — Minha nossa, que grandão!”.

Existe uma fase na vida em que todo adulto dita as regras porque, comumente, a criança é “incapaz” de se sustentar e/ou tomar decisões. Mas, na cabeça da criança, ela tem tanta capacidade como uma pessoa qualquer. É papel dos pais delegar responsabilidades, é papel dos filhos, aprender, mas é papel de todos, dialogar. Somos seres independentes. O problema é que, na fase adulta, somos tomados de uma estranha infantilização, e isso se deve (pelo menos na minha certeza) a infâncias mal vividas.

Essa infantilização adulta gera uma bolha superprotetora em torno da criança e dos animais domésticos, com isso o diálogo é encurtado. Como resultado disso, crianças são tratadas como se fossem incapacitadas, e animais domésticos como se fossem crianças. Alguns, mais exaltados, chegam a aparar as unhas, colocar sapatos e roupas nos bichinhos, tolhendo sua capacidade de autodefesa. Basta olhar as crianças, elas amam a liberdade e não estão nem aí para os “arreios” que insistimos que elas usem. A criatividade vem da liberdade, o fortalecimento vem do enfrentamento, o respeito vem do diálogo.

Mas não estou aqui para questionar a maluquice adulta, quero é falar sobre a infância. Crianças que vivem sua infância, com liberdade e orientação, são adultos bem-resolvidos. Toda criança tem sonhos e imaginários. Isso pode parecer redundante, mas vou explicar. O sonho é expectativa de resolver entraves, já o imaginário é liberdade. 

O imaginário permite a criança montar em um cabo de vassouras e cavalgar; colocar o celular na mão dos pais, e ficar ao lado, falando com eles, como se estivessem distantes e fossem seus conselheiros... E um trilhão de outras possibilidades. O resumo disso tudo é: a criança pensa, sofre e quer ser ouvida e respeitada. A criança que é acolhida em suas opiniões é mais criativa, e se torna adulto mais seguro de suas decisões; adulto mais aberto ao diálogo... tudo isso reflete na saúde mental. Como diria Casimiro de Abreu, “Livre filho das montanhas”.

Quando olhamos adultos descompensados, não precisamos ir longe para encontrar a causa, basta investigar sua infância e grande parte das respostas estarão ali. É comum ouvirmos depoimentos de pais dizendo: “mas ele sempre teve tudo, sempre teve o melhor...”, possivelmente o problema seja esse. A criança quer afeto, quer ser ouvida, quer se sentir útil, participar da construção humana... e se isso não acontece, elas canalizam suas dores e frustrações para objetos e surtos.

Como nos ensina Ruth Rocha, em seu poema “O direito das crianças”: “Toda criança no mundo / Deve ser bem protegida / Contra os rigores do tempo / Contra os rigores da vida”, “Mas criança também tem / O direito de sorrir. [...] / Ter lápis de colorir…”, bem como, “Ver uma estrela cadente, / [...] Ouvir histórias do avô”.

Recorro-me ao “Poeminha do Contra”, de Mário Quintana, para definir tudo isso: “Todos estes que aí estão / Atravancando o meu caminho, / Eles passarão. / Eu passarinho!”.
Nesta semana, a vida me agraciou com uma torrencial de afeto, que há tempos eu não encontrava. 25 crianças da segunda infância intermediária (6 aos 9 anos) me receberam para uma conversa. Dentro delas, a expectativa que só a pureza de alma é capaz de alcançar. Algumas vivendo o imaginário; outras, o sonho. Mas, dentro de cada uma, a certeza de seu momento.

Encontros e palestras são coisas corriqueiras para qualquer escritor, mas ouvir a criança dizer, emocionada, “nem dormi, pensando neste momento” é raridade, e imprime muita responsabilidade ao que diremos a ela. Receber uma carta, pensada pela própria criança, em sua total liberdade de criação, é algo além da pedagogia. Isso é certeza de si.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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