Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90
06/06/2024 às 08h00min - Atualizada em 06/06/2024 às 08h00min

Voz própria

IVONE ASSIS
Para Leyla Perrone Moisés (1978), o escritor sempre recorre a obras históricas para construir sua própria escrita: “Em todos os tempos, o texto literário surgiu relacionado com outros textos anteriores ou contemporâneos, a literatura sempre nasceu da e na literatura” (1978, p. 59). Perrone-Moisés relembra a imensidão de obras embasadas na Bíblia, e outros clássicos e, sem dúvida, podemos acrescentar nossa própria experiência, nesse contexto. Perrone-Moisés recorreu a outros autores, assim como eu estou a recorrer a ela, a fim de traçar estas parcas linhas.

A construção literária é um continuum quando se trata de buscar apoio naqueles que nos antecederam. “Os Lusíadas”, de Camões, veio de uma navegação na Bíblia; Fernando Pessoa consultou Camões; James Joyce buscou, em Ulisses, de Homero, inspiração estrutural para sua narrativa... Renato Russo consultou o livro de Coríntios, na Bíblia, para compor sua “Monte Castelo”. Esse mesmo carioca Renato Manfredini Júnior se inspirou em outros grandes nomes da literatura (Bertrand Russell, Jean-Jacques Rousseau e Henri Rousseau) para se transformar em Russo, seu sobrenome artístico.

Isso também é erigir memórias. A partir do século XX, esse reconstruir, na ficção literária, ganhou o nome de Intertexto. Logo, é a partir da intertextualidade que vamos nos reencontrando com a arte dentro da arte. De acordo com Julia Kristeva (1969, p. 88): “a menipéia constrói-se como um mosaico de citações. 

Compreende todos os gêneros: novelas, cartas, discursos, misturas de verso e de prosa, cuja significação estrutural é denotar as distâncias do escritor em relação a seu texto e aos textos”, ou seja, todo texto se constrói desse mosaico de citações, um texto é sempre o ressurgir de outro texto, como se fosse um grande processo de metamorfose. Observemos que, em 1978, Leila Perrone-Moisés escreve, em sua obra “Texto, crítica, escritura”, um conceito bem semelhante a esse, conforme citado no início desse nosso conteúdo.

Isso denota, mais uma vez, as águas literárias do oceano de inspiração nas quais os escritores se lavam. Pode ser que a inspiração de ambas tenha sido em outro crítico literário, o que importa é entendermos que os textos são reflexos daquilo que lemos, vivemos e vimos. A fonte que entusiasma o criador literário (e artístico) é um banco de empréstimos, desses que, quanto mais pegamos emprestado, mais investimos, logo, mais rico ficamos em nosso léxico.

Para Gerard Genette, em seu Palimpsesto (1982, p. 20), esse processo resulta em uma literatura de segunda mão – creio que não no sentido pejorativo da palavra “segunda mão”, mas, sim, no sentido de reaproveitamento, como reconhecimento do valor, logo, um investimento sobre o que deu certo. 

Pois, como o próprio Genette ilustra, é como se fosse um palimpsesto, ou seja, “um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê-la por transparência, o antigo sob o novo”. Mas, para isso, é preciso um zelo em não apagar o ponto de origem, de modo que a nova tessitura sempre valorize o reconhecimento daquela que a antecedeu. Do contrário, o conceito de segunda-mão será levado a outra direção.
Cabe ao leitor crítico reconhecer a originalidade, ou não, de um texto. Ou, como muito bem nos ensina Genette (2010, p. 17), o leitor, o crítico, o público, “podem muito bem recusar o status reivindicado por meio do paratexto”.

Preciso aprender mais sobre Dostoiévski, Kristeva e Mikhail Bakhtin para aprimorar minha crítica, mas, uma condição é inequívoca, estamos sempre a aprender com o outro, e mencionar os créditos em citações diretas ou indiretas é, no mínimo, decoro. Sabemos que, sobretudo na ficção, na poesia e afins, a palavra pura quase inexiste. 

Agora, com o recurso dos bancos de dados e a I.A., estamos, cada vez mais, a perceber o silenciamento dentro de uma literatura polifônica. Ninguém deve inventar estilos que confundam o leitor quanto à originalidade. Todo escritor carece ter voz própria.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
Leia Também »
Comentários »
Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90