Desde o século V antes de Cristo tem-se registro de crises humanitárias, sobretudo na questão da Fome. Embora a ONU (2016) tenha apontada uma superprodução mundial de alimentos, isso não impediu a crise da fome na Venezuela, em 2019. Mais de 1 bilhão de pessoas são vítimas da subnutrição. A fome segue abocanhando pessoas aos milhares, todos os dias.
A literatura, o cinema e afins, se encarregam de registrar episódios, na tentativa de evitar o esquecimento. Mas, não basta lembrar, é preciso agir, e essa ação cabe aos governos. A fome não se resolve apenas com a produção de alimentos, e sim com políticas eficientes. Crer que não há solução é acreditar na falta de evolução humana.
Acabar com a fome é mais que um ato de amor ao próximo, é negar-se à incompetência administrativa.
Em meio à fome está a humilhação, a falta de dignidade, as doenças, as discórdias... “Ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto. [...] O tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história” (Bakhtin, 2010, p. 211).
Um estômago vazio ecoa o som da angústia, mesclado ao pranto. Nada mais difícil para os pais do que ouvir o choro da fome nas crianças e não poder agir.
“Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Mello Neto (O poeta Engenheiro), 1955, tem, como assunto central, a Fome. A narrativa ocorre na segunda metade do século XX, na Caatinga do Recife, em Pernambuco, e Severino é narrador e personagem. Um homem que vai esbarrando na morte do sertanejo todo o tempo, até que, ao querer entregar sua própria vida à morte, é surpreendido pela vida, a chegada de um filho. E assim ele é despertado para a vida, representando o auto de Natal, com o nascimento da criança. Morte e vida porque começa com a morte e termina com a vida.
Milhares de obras abordam o problema da Fome, mas isso não tem amenizado o quadro. Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, ambos foram diplomatas brasileiros, e ambos abordaram o problema da fome em suas literaturas, tranquilamente com consciência dos fatos. Rosa tanto escreveu para adultos como para o público infantil. Melo Neto preferiu se pautar na poesia, em uma escrita seca, que riscava os traços da miséria nordestina, sob sol, fome, injustiça social, seca... relatando “balas-pássaras”, que derrubavam homens que plantavam na pedra.
A fome é capaz de comprometer o equilíbrio da racionalidade, porque a prioridade passa a ser a sobrevivência. O sr. Andor Stern talvez seja a referência mais próxima, que eu tenha tido conhecimento, de pessoas que viveram a fome mais extrema e absoluta. Stern foi o único brasileiro a sobreviver dos campos de concentração nazistas, na Alemanha. Ele saiu de lá, em 1945, pesando 38 kg, apenas.
Segundo relatos dele, a mesma vasilha que era a latrina, era também o prato. E comer vômitos não foi exceção. Ao ser indagado se lá não era cheio de ratos a resposta foi: “Se houvesse ratos, teríamos comida”.
Ao ser encontrado em um vagão, que os levavam para o extermínio, mas que foi abandonado às pressas, em delírio de fome ele dizia, repetidamente, aos demais: “Descasquem as batatas”. Mas, que batatas? Ainda assim, ao ser liberto, Andor Stern, nascido em 1928, viveu uma vida de gratidão e superação. Voltou para o Brasil, foi empresário de sucesso e viveu até abril de 2022.
O poeta Manuel Bandeira, em seu poema “O Bicho”, escreve:
“Vi ontem um bicho / Na imundície do pátio / Catando comida entre os detritos. // Quando achava alguma coisa, / Não examinava nem cheirava: / Engolia com voracidade. // O bicho não era um cão, / Não era um gato, / Não era um rato. // O bicho, meu Deus, era um homem.
Quando questionado sobre viver bem, ele sempre afirmava, viver bem é ser livre, é ter comida e uma cama limpinha para dormir, todos os dias. É poder ir e vir. Então, a fome assolou a vida desse homem, mas, mesmo assim, ele encontrou meios de vencer sua fome.
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