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09/05/2024 às 08h00min - Atualizada em 09/05/2024 às 08h00min

Ebulição do rio

IVONE ASSIS
O poeta e professor Felicíssimo Silva, da cidade de Pelotas, em 1983 escreveu um poema que diz: “O homem sente quanto é pouca a suficiência / Para, sem Deus, alcançar os planos seus. [...] / Até que voltem a seus leitos, rios e lagos, / Que se possam resgatar tantos estragos, / Animados da esperança – que não morre – / Que nos acudam as modernas invenções: / Helicópteros, o rádio e os aviões, / E todo um povo solidário, que socorre”.

Naquele 1983, a chuva de 31 dias promoveu uma enchente no Vale do Itajaí, fazendo com que o rio Itajaí-Açu deixasse cerca de mais de 197 mil desabrigados, em 90 municípios catarinenses. O tempo passou e o estado foi se reconstruindo.

De lá para cá, foram rompimentos de barragens, vazamentos de óleos nas águas e naufrágios de plataformas e rebocadores – reescrevendo a história das petrolíferas; incêndios e liberação de gases tóxicos, pelas indústrias do polo petroquímico; césio-137; e tantos outros desastres. Todos os anos, algum lugar do país é gravemente penalizado com as águas torrenciais.

Os desastres ecológicos têm ganhado grandes destaques, no cenário mundial. E, no Brasil, neste momento, a situação é de calamidade pública. O cenário é de guerra. O Rio Grande do Sul foi invadido pelas águas, e o saldo é de crianças órfãs, em todas as idades; pais chorando a perda de seus filhos; viúvos enlutados por seus pares; multidões famintas e sem empregos.

Carlos Drummond de Andrade, em seu poema “Morte das casas de Ouro Preto”, publicado em “Claro Enigma”, diz: “Sobre o tempo, sobre a taipa, / a chuva escorre. As paredes / que viram morrer os homens, / que viram fugir o ouro, / que viram finar-se o reino, / que viram, reviram, viram, / já não veem. Também morrem”.

Essas tragédias levam as casas e deixam a dor, de modo a abalar a saúde emocional/mental, que tem seu reflexo no corpo humano, nos mais diversos formatos de doenças. Dentre elas estão o transtorno de ansiedade, os ataques cardíacos, a depressão...Porque o golpe é muito duro. As perdas são irreparáveis.

Multidões humanitária se esforçam a restaurar a dignidade dessas vítimas, e isso é mais que urgente e louvável, mas não podemos nos esquecer de que as sequelas são permanentes e os temporais são cíclicos. Ou seja, psicólogos, psicanalistas, terapeutas e outros ainda estarão procurando formas de tratar o emocional das vítimas de uma tragédia e a chuva já se prepara para chegar novamente, porque elas vêm todos os anos. 

Logo, o Estado precisa ser mais eficiente e mais humano, investindo em engenharias qualificadas, reflorestamentos corretos e, sobretudo, respeitando o caminho das águas, quando se tratar de construção urbana e de reconstrução pós-tragédias. A cidade inteligente ainda é uma utopia. Não se briga com a Natureza, expulsando rios e árvores, quem vem depois que se planeje. A Natureza chegou primeiro.

O CEMADEN (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) informou que 2023 foi recordista em desastres naturais, com 1.161 ocorrências, sendo 716 associadas a eventos hidrológicos, como transbordamento de rios, e 445 oriundas da geologia, como deslizamentos de terra.

Segundo o Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), em junho de 2023, o Rio Grande do Sul foi acometido por um ciclone extratropical, que vitimou cerca de 2 milhões de pessoas, em mais de 40 cidades.

E o 2024 trouxe a Enchente do Guaíba, superando o recorde de 1941, em claro sinal de que não houve melhoria na infraestrutura do ano anterior para o ano atual. De acordo com Masato Kobiyama (2006), as inundações “são os desastres naturais que, historicamente, mais causaram perdas humanas no Brasil”.

E as maiores vítimas são sempre as populações mais vulneráveis. Como escreveu Drummond, em “Morte das casas de Ouro Preto”: “Que se incorporem as árvores”, pois, “A chuva desce, às canadas. / Como chove, como pinga / no país das remembranças! / Como bate, como fere”. 

E ao som do poeta as casas vão sendo naufragadas, na ebulição do rio.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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