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25/04/2024 às 08h00min - Atualizada em 25/04/2024 às 08h00min

Conquista com sucesso

IVONE ASSIS
Manuel Bandeira, em seu poema “O Bicho” diz: “Vi ontem um bicho / Na imundice do pátio / Catando comida entre os detritos. / Quando achava alguma coisa, / Não examinava nem cheirava: / Engolia com voracidade. / O bicho não era um cão, / Não era um gato, / Não era um rato. / O bicho, meu Deus, era um homem”.

Em um mundo no qual tanto se fala em igualdade social e que, a todo momento, nos deparamos com “bichos” fazendo moradas nas calçadas e lugares abandonados, não dá para fechar os olhos e fazer de conta que não estamos vendo.

O poeta Manuel Bandeira, com seu poema “O Bicho”, rasga essa falsa política de cuidado social e escandaliza a realidade. O cenário sociocultural é marcado pela vulnerabilidade, e esta envolve a Saúde, a Educação, o Mundo dos Negócios... o todo, sobretudo, a VIDA, e o ser sob ataque é nomeado como morador de rua. Esse indivíduo, além da miséria e demais infortúnios que leva sobre si, também é revestido com a capa do preconceito.

É cômodo dizer que “escolheram” aquela vida. Mas quem escolhe ser derrotado? Uma derrota não habita no extrato bancário, ele reside na mente do sujeito. Não é à toa que dentre as pessoas em situação de rua residem advogados, médicos, engenheiros e tantos outros. Pessoas que um dia tiveram status social e, de repente, foram combalidos pelo emocional.

O mundo vive a maior pandemia de psicose de toda a história. São milhões de pessoas doentes mentalmente, nos mais diferentes graus de loucura. O resultado do emocional não tratado está nas páginas de jornais, nos relatórios das psiquiatrias, nas redes sociais, nos presídios, nas ruas e calçadas das cidades, nas beiras de rodovias e outros.

O emocional doente leva à depressão, à ansiedade, à loucura, à desrazão... A lista de nomes que nomeiam essas doenças é imensa, e o nome do veneno que agrava todas elas é o preconceito. Remédio e veneno são manipulados com a mesma matéria-prima, a diferença está na dosagem, na aplicabilidade, na ministração adequada, e tudo se inicia na consulta.

Nomes como Vincent Van Gogh (pintor), Clarice Lispector (escritora), Franz Kafka (escritor), Winston Churchill (Primeiro-Ministro), Buzz Aldrin (engenheiro, piloto e astronauta), Joana de Castela (Rainha), Nabucodonosor (Rei), Saul (Rei), Maria I (Rainha, mãe de Dom João VI) e uma lista quilométrica de outros nomes, em todos os setores profissionais, foram, todos, vítimas de suas emoções e condições psíquicas.

Atualmente, nomes como Bipolaridade, Mania, Burnout, Ansiedade, Depressão, Estresse, TOC, Fobia social, Síndrome da tensão pré-menstrual, Esquizofrenia... e tantos outros, compõem a lista das doenças mentais contemporâneas e, talvez, o maior preconceito está sobre a Esquizofrenia, mas quando lemos as bulas de medicamentos não é de se surpreender com o ponto comum. Sem tratamento adequado, qualquer ser humano está sujeito ao abismo. E com tratamento correto, todo doente é passível de dignidade.

Freud, na obra “O mal-estar nas civilizações IV” (p. 66), escreve: “Por um lado, o amor se opõe aos interesses da cultura; por outro lado, a cultura ameaça o amor com sensíveis restrições”. Divergência inevitável. Começa com “conflito entre a família e a comunidade mais ampla a que pertence o indivíduo”. Nesse ponto reside o divisor de águas: os corajosos e amparados pelo amor procuram tratamento; os demais “se perdem” em diferentes rumos; deste, grande parte passa a habitar as ruas. Do emocional doente para as ruas é um pulo.

Um morador de certa calçada, mendigo de sinaleiro, disse: “Já errei de todas as formas”. Após meses de conversas e sugestões, ele disse: “Cansei de errar, quero mudar”. Isso é encantador de se ouvir. Passou a reciclar. Um dia, sumiu. Nesta semana, tivemos a alegria de o reencontrar. Nem o reconheci, carregava a alegria no rosto. Todo arrumado, aproximou-se, dizendo: “Aí, comprei [exibindo bicicleta e celular]. Abandonei o carrinho. Agora sou entregador de um restaurante”. Chamamos isso de conquista com sucesso.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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