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13/04/2024 às 08h00min - Atualizada em 13/04/2024 às 08h00min

Lições de Abismo – Parte IV

EDMAR PAZ JUNIOR
Foto: Reprodução/Internet
Mais uma vez, reitero aqui a ideia por trás dos últimos textos que venho elaborando nessa pequena série: a percepção de “lições” que devemos assimilar durante nossas vidas, baseando-me na obra de Corção, pois acredito que o autor tenha nos deixado essa “lição de pensar nessas lições”, e já comentei sobre a ideia das Pérolas, da percepção dos pormenores e também sobre as Rosas. Sigamos.

Quando o escritor narra a história de José Maria, o personagem principal da obra, descreve, em certa medida, que praticamente toda a sua vida foi baseada em algo que no futuro ele não pôde ter. Ou melhor, que quase toda sua atenção foi dada para aquilo que não tinha tanta importância: situações rotineiras de vida, pragmatismos e algumas futilidades, deixando passar o essencial, que era justamente a “presença” na vida das pessoas que estavam com ele. Assim, por mais que ele consiga relatar os mínimos detalhes das coisas que lhe aconteceram, fica um tanto quanto nítido a sua tristeza por não ter “vivido” aquilo que narra mais intensamente.

Há também uma espécie de “criação” deficiente por seus pais, de “distância” (que poderia até ser utilizada como forma de desculpa, de causa e consequência de suas ações, o que a meu ver, se torna inócuo), porém, a maneira de “substanciar”, de preencher sua trajetória de vida, era frágil, fraca, sem “tempero” e um tanto quanto vazia de fundação, de fundamentos, e, evidente que tudo aquilo que se constrói por cima de uma base débil, rui no primeiro chacoalhar. Foi assim com a história de seu casamento, contada por ele mesmo.

Viver uma “vida alheia” à vida que passa tem sua penalidade. Não que devemos viver para o mundo, mas sim viver no mundo fora do mundo. Sei que isso soa como um paradoxo, mas aqui entramos na lição bíblica do Apóstolo: aquele que morrer para o mundo, terá vida eterna. Eis o fundamento do desenraizamento material, do desprendimento do mundo. Mas há também um alerta: o “desprendimento do mundo” é completamente diferente do “desprezo pela vida”. 

Neste têm-se a noção errônea do “carpe diem”, do viva o hoje como se não houvesse amanhã, quase que absolutamente contaminada pela visão materialista e hedonista que a maioria das pessoas possui atualmente, que as fazem “usar e abusar” de bebidas, comidas, festas e tudo quanto mais que pode degradar nosso corpo pouco a pouco. Costumo usar uma frase para isso: suicídio passivo.

Doutro lado, o desprendimento do mundo carrega mais o conceito de um “usar com moderação”, que acredito ser bem definido na frase de Santo Agostinho: “cuide do seu corpo como se fosse viver eternamente e de sua alma como se fosse morrer amanhã”. Veja, não pretendo ser um guru nesse ou noutro texto, dizendo o que se deve fazer ou não; cada pessoa tem a inteligência suficiente para descobrir o que é bom ou não para si. A ideia aqui é justamente a de poder dar uma espécie de “visão” a mais de um dos lados do cubo.

Gosto também da ideia de Chesterton, quando ele diz que há diferença entre o suicida e o herói de guerra: aquele tem a necessidade de perder sua vida para encerrar seu sofrimento; este, entrega a sua vida para evitar o sofrimento de outros. Esta é a raiz da diferença que tento citar acima: um ama a vida; o outro a odeia. Se vivemos uma vida de futilidades, de sofrimentos sem sentido, de amores irreais e entrega ao que é efêmero, estamos, na verdade, odiando-a velada, imperceptível e inconscientemente. 

A última lição é quase como uma que abarca todas as outras. Tenho também a percepção de que essas “operações” não se realizam separada e sucessivamente, mas sim, concomitantemente, de forma que indissolúvel, com interdependência delas para com elas mesmas. No livro Caminho, de São Josemaria Escrivá, o santo apresenta no ponto 281 um ensinamento valiosíssimo: “O silêncio é como que o porteiro da vida interior”, e é aqui que lastreio essa derradeira lição: o encontro consigo. 

Perceba, que não há possibilidade de realizar, ou pelo menos tentar refletir, sobre as outras lições que expus acima, sem antes ter esse recolhimento, essa introspecção que o próprio personagem faz durante toda a obra. Muitas vezes as pessoas não querem “ouvir” suas vozes interiores por dois motivos: ou porque simplesmente não tem conteúdo aproveitável ou porque sabem exatamente da miséria que carregam, e tentam a todo instante buscar algo que valide suas ideias em coisas ou pessoas que são tão vazias e miseráveis quanto elas mesmas. É quase como aquela história do cego guiando outro cego por uma travessia de rua.

O Professor Olavo diz uma frase maravilhosa nesse sentido, em seu diário filosófico: “Cem anos de estudo dos critérios lógicos de prova não ensinam tanto sobre a busca da verdade quanto uma confissão bem-feita. Ao contrário: o mundo está repleto de nerds que se escondem atrás da lógica para não ver a miséria de suas almas. ” Diz ainda em outro texto: “todo ser humano tem indagações que só podem ser resolvidas com certo conhecimento – mas nem todos vão dedicar seu tempo à procura desse conhecimento pois, na realidade, estão procurando uma solução prática para o desconforto que sentem. Então dividimos as pessoas em dois grupos: as que querem a verdade e as que querem alívio. Estes últimos não o encontrarão pois, a nível pragmático, o problema não tem solução. ”

Perceba, não se trata de “resolver” ou não o problema de nossa existência, ou o destino da humanidade, mas de entender que a complexidade de nossas vidas apenas aumenta conforme o tempo, o que faz com que necessitemos pensar “uma de cada vez”, ou seja, resolver aquilo que se nos apresenta em cada momento, com nossa “presença por inteiro”. 

Mais uma vez – e não tem como escapar disso – retomo o ensinamento acima de São Josemaria, para dizer que o único caminho desse conhecimento e entendimento sobre nossa complexidade, a consciência sobre a realidade, passa pelo encontro consigo, essa vida interior, que abrimos nossa percepção principalmente quando conseguimos ouvir a voz de Cristo dentro de nós, quando diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Faça esse recolhimento, esse silêncio, e perceba o quanto há Beleza a sua volta. Esse é mais um belo paradoxo: olhe para dentro de si e perceba o mundo. 


Lições de Abismo, Gustavo Corção.



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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