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11/04/2024 às 08h00min - Atualizada em 11/04/2024 às 08h00min

Algo a aprender

IVONE ASSIS
Ao ler “Passarada...”, organizado por Erika Hingst-Zaher e Guto Carvalho (São Paulo: Butantan, 2017), deparei-me com algumas situações, no mínimo, curiosas, que me inquietaram. A questão é que vivemos muitas situações que não nos detemos nelas, por considerá-las coisa do acaso, ou meras situações comportamentais e, de repente, lá vem a coisa com um nome.

Foi o conto “Arara-vermelha-grande”, da escritora Luciana Leite, que me desassossegou, por completo. Quem me conhece, sabe do fascínio que tenho por viagens e palavrinhas novas. E Luciana Leite trouxe os dois desafios juntos em seu conto, quando falou no diagnóstico do eu-lírico, o qual sofria de Ecdemomania. Aquilo acionou um gatilho em mim: “Que palavra é essa?”. Maior foi a surpresa quando o Dr. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira me deu o diagnóstico, “Desejo de viajar”. Confesso que ri alto.

Atrelado à Ecdemomania está seu sinônimo Wanderlust e Dromomania, tudo se pauta em viagens, seja desejo, seja fuga. Fui lendo aquilo e pensando no meu avô, em meu pai, até que cheguei em mim. Não dá para negar que a “doença” existe, mais impossível ainda é negar que se vontade de viajar é doença, a viagem em si é remédio, e dos bons.

Acabo de chegar de uma viagem curta, eu estava mal há dias, com três dias de bate-perna sarei. Então, vou dizer que isso é doença? Isso é cura. E que ninguém diga que sou biruta, porque seria ampliar a doença. Então, se tiver que repetir os exames, que me sejam receitadas uma dúzia de viagens aleatórias e, pelo menos, duas tarja-preta, dessas que a gente precisa ir de voo, com reservas em hotéis e, perdão, mas não dá para não rir. Bom demais!

De volta ao conto de Luciana Leite, ela inicia sua escrita narrando sobre a dificuldade que é “pedalar com um balão de hélio amarrado ao fundo da bicicleta”. Experiência vivida pela personagem, sob a chuva que molhava seus óculos de grau, na cidade de Cambridge, na Inglaterra. A todo aquele desconforto ia acumulando uma dose de prazer, que trazia relaxamento, ansiedade e “sensação de não pertencimento”. Então, “entre pedaladas e filosofias, eu me equilibrava. Com uma mão, guiava a bicicleta e, com a outra, tentava segurar a arara inflável, de voo descontrolado”. Sobre o bicho, com “aproximadamente um metro”, era “cópia fiel de uma arara-vermelha-grande”.

Enquanto fui lendo sobre esses enormes psitacídeos brasileiros, “animais extremamente sociáveis”, fui arremessada de volta à curta viagem da qual eu acabara de chegar. Aquele lugar tinha a calmaria das águas, o canto da passarada, bem-te-vi bebendo água no bico da torneira. Entre buracos de tatus e cobras no meio do caminho, à espera de algum desavisado, o melhor mesmo foi encontrar ninhadas de ovos de angola no meio do cerrado, porque o bicho é muito mais viajador que qualquer vivente.

O capim estava alto e, apesar de o dia já estar quase finalizando, o sol estava escaldante. Pernas cansadas, cabeça leve como a pluma. Soltei meu corpo sobre aquela imensidão verde, ao mesmo tempo em que a revoada de araras, não as vermelhas, e sim a arara-azul-grande, sobrevoou, enfeitando o céu para mim. Cenas assim, são poéticas demais para serem descritas em palavras. Só quem a vivencia é capaz de entender.

Se uma daquelas azulonas me desse uma carona, eu voaria com ela, com toda certeza.
Em seu conto, Luciana Leite escreve: “eu já nasci de malas prontas [...], à medida que me tornava mais independente, a vontade de sumir crescia. As viagens se tornaram mais longas, e aos poucos as horas viraram dias, [...] meses, [...] anos”. Até que, finalmente, saiu o diagnóstico: “ela sofre de ecdemomania”.

Entre uma migração e outra, fui me encontrando, e me divertindo. Deus é bom demais, por anos, meu trabalho era viajar, sem rotinas. Um dia, encontrei o amor, já são três décadas de voos juntos, curtos ou longos, todos valiosos. Ele é joão-de-barro, adora apreciar sua casinha; eu sou andorinha, ave migratória. Essa diferença nos completa e, com equilíbrio, sempre temos algo a aprender.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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