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17/02/2024 às 08h00min - Atualizada em 17/02/2024 às 08h00min

Lições de Abismo

EDMAR PAZ JUNIOR
Foto: Edmar Paz
Todos nós precisamos de uma certa dose de ficção na vida. Não no sentido de que devemos ficar imersos em irrealidades, principalmente porque acredito que a percepção da realidade é o nosso maior trunfo para viver... a realidade. Gosto do trecho do livro 12 Regras para a Vida, de Jordan Peterson, quando ele conta a história do barulho por trás de um arbusto: pode ser um urso; ou pode simplesmente ser um esquilo inofensivo. 

Na passagem, o psicólogo canadense conta que a primeira reação de muitas pessoas ao ouvir o barulho, é imediatamente correr, sem saber do que se trata. É uma alusão ao sentimento de fuga, de “fingir” que nada está acontecendo em nossas vidas, enquanto tudo em volta desmorona. A premissa final é a de que tentar saber o que está por trás do barulho, é a melhor solução para poder enfrenta-lo: se for um esquilo é um problema de fácil solução, mesmo quando o barulho for assustador; mas ainda que seja um urso, a ideia de ter a real noção daquilo que temos de enfrentar, já basta para que consigamos reunir condições de pelo menos tentar uma solução.

Há certas histórias de ficção que são tão profundas, que nos dão a impressão de que, além de contar uma ótima história, marcam lições que temos de tomar para nossas vidas. Está aí, é onde se enquadra o gênero literário de Lições de Abismo. 

A história gira em torno do personagem principal, José Maria, que faz uma introspecção, uma espécie de reflexão profunda sobre sua história de vida, a partir do momento que é diagnosticado com Câncer, mais especificamente Leucemia. Interessante notar que o livro foi escrito na década de 1950, então, em certa medida, as técnicas médicas e as tecnologias disponíveis não eram tão eficazes quanto hoje, o que, de algum modo, quando constatada a doença, era quase como uma “sentença de morte”. Esse fato, entretanto, não diminui a essência daquilo que o autor quer transmitir através da história: nossa natureza humana, nossas aflições, nossos medos e angústias não mudam, por mais que o mundo tecnológico evolua.

A inteligência de José Maria fica evidente em várias passagens do livro, principalmente pela forma como começa a enxergar o mundo após o diagnóstico. Nessa questão, suas próprias reflexões já nos servem como lições a serem apreendidas na obra.

“Basta dizer ‘uma vida de homem’, para que sintamos na alma uma particular ressonância. A menos que ande no ar um vício profundo, todos sabem que uma vida de homem é algo sagrado. Mas por quê? Procedamos com cautela, prestemos atenção, toda a atenção às ressonâncias que as palavras despertam em nossa alma. Eu disse há pouco: ali vai um homem. Mas essa realidade tem dois lados. O indivíduo que agora dobra a esquina não é o homem-em-geral. É um homem. Um. Resta saber que sentido tem esse ‘um’. Se numérico, o objeto de minha percepção entra nas estatísticas, e a definição emagrece. Mas se dou a ‘um’ o sentido de único, de concreto, de completo, de particular, de substancial, de excepcional, de separado, de total, então minha visão essencial se alarga e eu me surpreendo a indagar ’quem’ é aquele homem?”  

Tem-se, aqui, a individualidade – e a própria noção de caridade, que o autor considera em sua obra “A Descoberta do Outro”, como a maior riqueza do catolicismo – que é exatamente “perceber” o outro, amá-lo em sua singularidade.  
Noutra passagem, Corção reflete, através de José Maria, sobre uma ideia que fala em várias de suas crônicas, de que se nossa vida estivesse limitada ao que está ao alcance dos nossos olhos, tudo seria um absurdo. “Tomando, como hipótese de trabalho, a ideia da imortalidade da alma, vejo claramente que certas antinomias se resolvem, que desaparece o aberrante choque entre a morte e a vida, e que uma filosofia razoável se substitui à filosofia do absurdo. Vejo finalmente que o sentido da vida emerge da confusão. ”

A Beleza com que Corção faz de seus escritos, mesmo nesse caso, uma ficção, surge quase como uma obra de filosofia, de um verdadeiro “enxergar as coisas pequenas do dia a dia”. Não surpreende que um de seus grandes influenciadores fosse José Ortega y Gasset, que dizia, por exemplo, “pare quem o pequeno não é nada, o grande não é grande. ” O papel do escritor, entendo, é o de justamente mostrar que existe relação onde a maioria das pessoas enxerga apenas coisas comuns; ou melhor, é mostrar aquilo que está bem diante dos nossos olhos, mas ninguém consegue ver.

“Algo de harmonioso, de sério, pode ser feito, desde que a gente se arranque do que há de confuso e vário. O mundo é um anárquico depósito, uma loja monumental, onde a gente compra estrelas e flores para a festa silenciosa e recatada no recesso da alma. Não é assim que fazem os escultores, quando arrancam o barro do chão e o trazem para o encontro de amor? Não é assim, por exclusão, por ablação, que o poeta destaca o que quer do anônimo e bulhento reservatório comum? O importante, na poesia e na vida, é a escolha; e por conseguinte a recusa. A poesia é uma greve, um protesto, como o fazem os límpidos cristais, com suas intolerantes arestas, no seio opressivo da montanha. Ninguém rejeita tanto como o poeta, e como o apaixonado. ”

Reflito, às vezes, em como são poderosas algumas pequenas frases, pois “escondem” uma imensidão de conhecimento; o “Conhece-te a ti mesmo”, de Sócrates, é um bom exemplo disso. Por trás desse conteúdo “compensado”, há um mar de conhecimento que pode ser destrinchado, e que Corção faz de maneira brilhante. 

“Ora, tudo o que se diz e se faz, de mais ou menos sensato ou mais ou menos absurdo, depende da solução desse enigma. Quem sou eu? Para que a vida tenha sentido, e para que a morte tenha alguma decência, eu preciso saber quem sou, por que vivo, por que morro, por que choro. De que me vale aprender o milhar de relações do mundo exterior, se não consigo apreender a substancial realidade que me diz respeito? Que me adianta medir a distância do sol e analisar a configuração do átomo do urânio, se desconheço a largura, a altura, a profundidade do meu próprio ser? De que me serve ganhar o universo se ando perdido de minha alma? ”

Para além dessas reflexões que o personagem José Maria faz, surge implícito – porém nítido – o pano de fundo que Corção sempre coloca em seus escritos: a defesa da Igreja Católica como lugar seguro para aqueles que estão perdidos e desejam encontrar um oásis de paz em vida; ou pelo menos, como ele diz, tornar o entendimento sobra a vida menos “absurdo”, e encontrarmos sentido nesse mundo desconcertado.

“Foi sempre assim: o homem, quando quer saber onde pisa, olha para o céu; quando quer regular seus movimentos, procura o imóvel”. Não esqueçamos do que disse Cristo: “céus e terra passarão, mas minha palavra não passará”.

Lições de Abismo, Gustavo Corção. 



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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