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08/02/2024 às 08h00min - Atualizada em 08/02/2024 às 08h00min

A leitura de cada dia

IVONE ASSIS
Fazendo a leitura de cada dia, é fácil notar que estamos vivenciando o apogeu das opiniões e da exibição dos fatos. Se houve um tempo em que, mesmo em uma tenda toda em lona e tecidos, a conversa da sala não chegava do outro lado da cortina e, acaso os olhos vissem qualquer coisa, a boca só a diria se houvesse autorização, agora é o contrário. “Ouve-se através de paredes de aço” e fala-se até aquilo que o outro apenas pensou. Estamos em uma “Era da Fofoca”, em que tudo e todos são expostos, igualmente, a tudo e todos. Há uma necessidade de exposição, sobretudo nas redes sociais, que, para muitos, virou uma patologia.

O que tem desencadeado essa extrema necessidade de aprovação alheia pode estar, intrinsecamente, conectado a um vazio interno. A sociedade contemporânea tem um mundo tecnológico à sua disposição, no entanto, falta-lhe um encontro consigo. A comunicação nunca foi tão acessível, mas isso parece ter cegado e emudecido as pessoas no sentido de olhar para si e dialogar com suas expectativas e satisfações próprias.

O que era para ser ampliação se converteu em isolamento e alienação. Os usuários de redes sociais se dividiram em dois grupos: aqueles que se expõe sem reservas, embotando-se nos encontros presenciais, principalmente dentro de casa; e aqueles que se dedicam a seguir, feito sombra, o primeiro grupo, tornando-se igualmente distanciados nos encontros presenciais, uma vez que, já não tem assunto e nem foco na conversa, por estarem ocupados demais a observar a janela alheia e a querer que o outro a olhe também. Ainda desse resultado podem surgir aqueles cujas emoções careçam de escuta e os encurralem no corredor da solidão.

Essa “multidão solitária” é a mesma que compõe o cenário social contemporâneo, mas como a vida não é um filme, faz-se urgente que alguém feche a escotilha que dá acesso à caverna, para que a fila observe todas as portas existentes e escolha conscientemente qual porta adentrar, e tenha o controle de quanto tempo ficará no espaço acessado.

Essa delimitação é simples de se fazer, basta analisar e ponderar o querer e a necessidade. Depois, avaliar se esse espetáculo é para o enriquecimento ou para o empobrecimento de si.
Nenhum espetáculo vale o mal-estar do espectador. Relembrando Freud (1930-1936), em “O mal-estar na civilização...”, à página 471, no tópico “A sutileza de um ato falho”, é possível uma analogia, pois, se de um lado o espectador grita “bis”, ou aplica o “bis” em seus dedos, exigindo de si a (re)visualização contínua de memes e tantos outros vídeos; do outro, aquele que propicia o espetáculo é pressionado pela fama e pela sua utopia de exposição a produzir mais e mais conteúdo, a qualquer preço, para não ser ignorado pelo algoritmo e, consequentemente, não cair no esquecimento. 

A ordem do algoritmo é, como escreveu Freud “Ne bis in idem” [Não repetir o mesmo procedimento], referindo-se ao direito romano, mas, para que o espetáculo não se repita, é preciso se aprisionar na contínua produção, esquecendo-se do mais importante: viver para si, porque o público continua a aplaudir e a gritar, como, segundo Freud (p. 471-472), “gritam os franceses” “quando querem a repetição de algo num espetáculo”: Bis, bis...

Parece haver uma incompatibilidade entre a necessidade e a demanda social, mas o sujeito estético, embriagado pela narcísica fama, quer fomentar a “cultura da imagem”, custe o que custar, por isso, afunda-se mais um pouco no lago dos dados. Até não saber mais quem ele é e quem ele gostaria de ser, porque o que importa é o dinheiro, ainda que este não lhe tenha nenhuma serventia se lhe faltar a paz interior.

Assim sendo, se no espetáculo de William Shakespeare questiona-se “Ser ou não ser – eis a questão”, lembremos de que seu contemporâneo René Descartes declara: “Penso, logo existo” (cogito, ergo sum). Desse modo, podemos construir, sem angústia, a leitura de cada dia.



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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