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04/01/2024 às 08h00min - Atualizada em 04/01/2024 às 08h00min

Sem Ponte

IVONE ASSIS
“DAMIÃO fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto [...]; foi antes de 1850. [...] Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria coisa útil”. (In: Assis, Machado. Obra completa, 1992, vol. II, p. 577-582).

"O caso da vara", de Machado de Assis (1891), publicado inicialmente na Gazeta de Notícias e, atualmente, no livro “A cartomante e outros contos”, carrega traços dramáticos com interferência do trágico e da farsa. O restante é releitura de uma sociedade republicana contemporânea ao autor, em que Machado de Assis vai delatando a violência e a imposição, havendo maior severidade.

“– [...] Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquela casa” (1992).
Quando se tratava de pessoas em situação de reclusão e/ou escravizadas, embora a Lei Áurea já existisse desde 1888, a situação era ainda pior. Para ilustrar, o contista apresenta os casos do menino Damião, que foge da condição de clérigo, e da menina Lucrécia, que serve à casa de Sinhá Rita.

O conto reflete sobre a transição histórica, os primeiros anos da República, a infeliz cultura de um senhorio que não desapegou dos velhos costumes, a infame política que não fazia valer o jurídico dentro das casas abastadas.

Duas situações de apadrinhamento de pouca valia são apresentadas: 1) Damião, que, em seu momento de angústia, critica seu padrinho de pouca serventia. 2) E ele próprio, que se dispõe a apadrinhar a menina Lucrécia, quanto ao término de suas tarefas, caso se atrasasse por ter ficado a ouvi-lo, no entanto, ao final do dia, seu apadrinhamento só serviu para que ele entregasse a vara à Sinhá Rita, para que esta esfoliasse a menina, por não terminar o serviço ainda sob a luz do sol.

O inválido ofício de padrinho de João Carneiro para com Damião teve tanta valia o quanto teve o ofício de padrinho de Damião para com Lucrécia, em uma roda viva de interesses próprios. “– Me acuda, meu sinhô moço!” (1992).

“O Caso da Vara” é cômico e trágico, ao mesmo tempo. Primeiro o seminarista é apresentado; depois, Sinhá e Lucrécia, de modo a os identificar, ao leitor, com suas idades e funções. Nota-se que, apesar do poderio e severidade masculinos de João Carneiro, do pai de Damião, do Seminário e até mesmo do aparente poderio de Damião ao apadrinhar Lucrécia, a única vontade, força e poder que se fez valer foi a de Sinhá Rita, que dominou os cavalheiros todos e surrou a pequena Lucrécia. Sinhá Rita, mulher de ação “bipolar”, é doce e insana, dependendo de seu próprio desejo. Manda em todos.

“– Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala. Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu à campanha”. (1992). // “Damião não teve remédio senão obedecer”. (1992). // “Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara [...]. Damião [...] compungido [...] pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita”. (1992).

É como se Sinhá Rita dissesse: “Sou muito boa, desde que a minha vontade prevaleça”.

A moral do conto machadiano pode estar imbricada na denúncia que revela a máscara político-social, em que a República moderna aboliu a escravatura, mas a sociedade não se remiu, com isso, houve uma maquiagem econômica e uma ocultação do racismo, em uma sociedade de imposição de valores bordados de quereres. De um lado o conto traz a realidade e do outro a desilusão, em um contexto que denuncia o comportamento humano, com todos os seus percalços sociais (egoísta, indiferente, interesseiro, austero...), revelado por meio da arte.

Inserido em um contexto histórico e social do realismo, o conto se inicia anunciando que o ano é 1950, mas tendo sido publicado em 1891. Nele, o universo da severidade revela que o rio que separa a igualdade e o preconceito, os bem-sucedidos e os pouco assistidos, os apadrinhados políticos e a plebe... continua sem ponte.


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