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28/12/2023 às 08h00min - Atualizada em 28/12/2023 às 08h00min

Pontas desamarradas

IVONE ASSIS
É comum se deparar com pontas desamarradas em processos, e sobre isso, o conto 51 da roteirista francesa Valérie Perrin, vem como uma crítica.

Seu livro de estreia, o ficcional “Les Oubliés du Dimanche”, veio quando Valérie Perrin já acenava para os seus 50 anos de idade, em 2015. Cito esses dados não para revelar que esta é uma autora tardia, e sim, para mencioná-la como exemplo aos muitos escritores de gaveta que não se encorajam a publicar suas obras, porque ficam presos às crenças de “fake news” que teimam em diminuir a literatura, dizendo que “ninguém lê”. É fato que o número de leitores poderia ser mais expressivo, mas só alcançaremos essa ascensão se publicarmos, se comprarmos livros, se lermos, enfim, se agirmos. O mercado é para todos e, embora a leitura do produto importado seja relevante, é essencial que fortaleçamos a produção e o consumo editorial brasileiros, prestigiando os livros nacionais e, principalmente, se os editais nacionais priorizarem a “Prata da casa”, porque a organização começa pelas gavetas, ou seja, a credibilidade começa em casa.

Perrin já angariou vários prêmios, foi traduzida em diversos países, soma milhões de livros vendidos, mas o seu prestígio literário se iniciou na França, ou seja, em casa.

Em entrevista à jornalista Raquel Carneiro (Veja, 22/12/2023), Perin narra sobre as agruras que permeiam o processo criativo daqueles que se aventuram na tecitura de tramas que transitam entre duas ou mais gerações e, ao explicar o porquê de suas escolhas de cenários literários, enfatiza: “Conheci a protagonista de Água Fresca em um cemitério. Para escrever esse livro, fui a um pequeno cemitério [...], decidi que seria interessante falar sobre uma zeladora de cemitério”.
Segundo Perin, semelhantemente a seus personagens, muitos jovens do interior são obrigados a migrar para os grandes centros para conquistar seu espaço no mercado, e isso não foi diferente com ela. Então, voltar para o torrão Natal, seja no cotidiano, seja na ficção, é uma forma de resgate de si.

Das traduções no Brasil, o livro “Três” ainda não li, mas “Água Fresca para as Flores”, um compêndio de 94 contos curtos, embasados na perda, se inicia com o texto cujo título achei primoroso: “Basta que um único ser nos falte para que tudo pareça vazio”. No entanto, por mais que eu tenha lido esse texto 1 (e gostado), não conectei a cabeça ao corpo – por certo, faltou-me cátedra –, ainda assim, quero citar a frase final dele, que é incrivelmente reflexivo. O eu-lírico descreve seus vizinhos, iniciando o conto com “Meus vizinhos não tremem na base”, e segue descrevendo-os até a penúltima linha, quando informa “Eles estão mortos”, e conclui com a frase que, para mim, se faz todo o texto “A única diferença entre eles é a madeira do caixão: carvalho, pinho ou mogno”.

Em “Água Fresca”, entre as ausências descritas, encontra-se o vazio de quatro famílias, expresso no conto 51, sob o título “Cada dia que passa tece o fio invisível da sua lembrança”. O texto vem ilustrado pela clássica “Puisque tu pars”, de Jean-Jacques Goldman, em que a editora traduziu: “Sem drama, sem lágrimas, pobres e irrisórias armas, porque existem dores que só choram dentro de nós”. Esse conto narra a morte de quatro crianças que ocupavam o quarto 1, no térreo, próximo ao quarto da inspetora Lucie Lindon, a qual salvou todas as crianças presentes, exceto Caussin (7), Léonine Toussaint (7), Gardon (8) e Degas (9)”, as quais, saindo “do quarto, sem autorização” e, segundo o júri e Cia., ao esquentarem o leite e dilapidarem os chocolates da cozinha, levaram tudo para o quarto, deixando o fogo aceso; este alçou o cabo plástico da panela, causando o incêndio. Apesar dos esforços em salvá-las, precisaram ser identificadas “com base nas arcadas dentárias”. As vítimas não foram acusadas de displicência, em contrapartida “os relatórios dos especialistas” não registraram “que Léonine não tomava leite. Ela tinha horror a leite”. Assim a ficção vai denunciando mais pontas desamarradas.

*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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