Foto: Reprodução/Internet Como dito antes, no decorrer da obra, Soljenítsyn monta uma espécie de itinerário daqueles que eram levados para os Gulags, tendo ele mesmo percorrido quase todas as “etapas”, e ainda as preenche com os relatos do que ocorria nas “entrelinhas” desses procedimentos.
Nas delegacias sempre havia a necessidade de se prender, uma vez que um braço da “força motriz” da mãe Rússia era exatamente a mão de obra escrava dos presos políticos, utilizados como trabalho forçado, nas construções de usinas, estradas e ferrovias, por exemplo, ou qualquer outra obra que o Partido Comunista achasse relevante e de interesse estatal.
Há relatos, por exemplo, de mulheres que iam buscar informações sobre seus maridos desaparecidos – que na grande maioria das vezes tinham sido presos, na verdade – e que, como ao final do expediente, os inspetores ainda não haviam atingido o número de presos requisitados pelo Partido, simplesmente prendiam aquelas também: “se ela ficou aqui o dia todo, provavelmente não tem ninguém preocupado com ela”...”já que está aqui, entra na contabilização também”. Era mais ou menos isso que os soldados e responsáveis pensavam.
Soljenítsyn conta também sobre alguns métodos de tortura que a Polícia Secreta utilizava para fazer com que as pessoas confessassem seus “crimes”. Era uma mistura insana de tortura física com psicológica, capaz de fazer inocentes confessarem delitos e atrocidades inexistentes. Num dos casos, conta que em várias delegacias havia uma espécie de porta “falsa”, contendo um espaço que cabia apenas uma pessoa em pé, que assim ficava por períodos extremamente longos, de dez, doze e até vinte e quatro horas, trancados atrás dessa porta...talvez aqueles que inventaram esse método tenham lido os contos de Edgar Allan Poe, que em um deles conta o desespero de um homem que foi enterrado vivo. Não há a necessidade de ser claustrofóbico para imaginar a situação desesperadora que é se ver desse modo.
O escritor russo narra a percepção que tinha aqueles que nunca antes haviam tido contato direito sequer com policiais, e que, agora, repentinamente se viam presos, por crimes que não haviam cometido, e que muitas vezes eram crimes apenas aos olhos do Partido. Uma das maldades dos soldados era justamente misturar esses presos políticos com os presos comuns, que, aproveitando-se da inocência e ingenuidade daqueles, roubavam, abusavam e muitas vezes até os matavam para conseguir qualquer bem que tivesse algum valor – que muitas vezes eram divididos com os próprios guardas depois. Com o país mergulhado na fome e na miséria, é evidente que se criou, bem embaixo dos olhos do todo poderoso Estado, um imenso mercado negro de artigos de luxo, como relógios, pedras preciosas, roupas, calçados, ou qualquer outra coisa que tivesse valor, inclusive comida.
Nessas ondas de prisões que Soljenítsyn nomeia como “torrentes”, diz que era como se as pessoas fossem presas por “épocas”, como se o Partido decidisse que era o tempo daqueles irem para as prisões: foram as torrentes dos estudantes, as torrentes dos padres, as torrentes dos engenheiros, e quem mais o Partido achasse que interfeririam ou poderiam atrapalhar o poder do Estado.
Em um caso, dessas torrentes dos engenheiros, durante uma tempestade, houve a queda de um raio em um determinado poste de energia central, queimando-o, o que fez com que grande parte da cidade ficasse sem energia. Como a pessoa que foi colocada pelo Partido Comunista como responsável da cidade, uma espécie de “prefeito”, precisava prestar contas ao diretório central sobre o que havia acontecido, precisava de alguém para “assumir a culpa” pelo “erro” – aqui cabe um ponto de reflexão, sobre como o pessoal da esquerda, socialistas/comunistas, são “inerráveis’ e consequentemente alguém sempre tem que levar a culpa, que não eles; note que isso não é exclusivo daqueles nossos tempos, e ainda permanece hoje, vide a atual Ministra de Estado do Meio Ambiente culpando o governo anterior pelo desmatamento e queimadas que acontecem sob a sua gestão. O engenheiro elétrico citado por Soljenítsyn tomou uma condenação de dez anos na Sibéria, por Sabotagem.
Num outro caso, para tentar combater a fome que assolava a URSS, o Partido determinou que os agrônomos “duplicassem” a produção agrícola. Como? Parece brincadeira, ao tentar impor uma solução tão simples para um problema tão complexo.
Acreditavam que conseguiriam tal façanha simplesmente interferindo na forma de produção: quando viram que entre as sementes havia um espaço de trinta centímetros, decidiram que para aumentar a produção com a mesma área, bastava diminuir pela metade o espaçamento entre as mudas, e quando alertados pelos agrônomos e agricultores – que, aliás, detinham o conhecimento técnico e prático, pra dizer por baixo, por pelo menos séculos – ainda rebatiam com ameaças: “quer dizer que vocês não desejam o desenvolvimento da Rússia?”Assim era realizado o plantio como determinava o Partido, e no fim, acontecia o que era óbvio: a plantação não vingava.
Mas como os líderes do Partido não erravam nunca – e não erram, ainda –, a culpa era dos próprios agricultores que haviam “dado um jeito de sabotar” as plantações. Eram condenados, então, à um quarto de século nos Gulags, por atentar contra o desenvolvimento da Rússia. Foi uma das torrentes dos agricultores.
A lista de barbaridades não para por aí. Continuamos no próximo texto.
Arquipélago Gulag, Aleksandr Soljenítsyn.
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