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04/11/2023 às 08h00min - Atualizada em 04/11/2023 às 08h00min

Arquipélago Gulag – Parte II

EDMAR PAZ JUNIOR
Foto: Reprodução/Internet
O livro é um compilado, não apenas de histórias de Soljenítsyn, mas também de outras pessoas com quem ele conviveu em seu tempo de prisão e tantas outras centenas de cartas e causos, que recebeu ou ouviu de interlocutores que presenciaram uma infinidade de casos ocorridos, entre as décadas de 1920 e 50, no regime socialista russo. Como se elaborasse uma espécie de itinerário da obra, percorrendo desde o momento em que são presos, as delegacias, os transportes, os gulags e o “fim”, o escritor russo preenche com relatos e impressões sobre os impactos desejados – ou mesmo quando não, usado em seu favor – pelo Partido Central, e a forma como solucionavam os “problemas” que lhes surgiam.

Um dos relatos que mais impressionam – sem contar os das atrocidades – versa sobre como o Gulag, nas palavras do escritor, estava em todos os lugares: “Você podia estar caminhando tranquilamente pelas ruas, quando, de repente, no meio de um tapume, uma porta se abria e mãos sem rostos te agarravam e transportavam para o arquipélago”. Esse estado de alerta, essa sensação que pairava sobre as pessoas de que a qualquer momento alguma coisa poderia acontecer e poderiam ser presos, era propagada, principalmente, pelo próprio governante, Stálin, que sempre insistia nessa ideia de haver espiões estrangeiros – claro, americanos – o que justificaria o estado de atenção constante: praticamente tudo e todas as ações eram motivo de desconfiança.

Esse pensamento tem sua raiz bem fundada no próprio Lênin – aliás, uma ótima história que, além de muito bem contada, reflete a realidade daquela época, em forma de parábola, é a do livro de George Orwell, A Revolução dos Bichos – que alçava todos os seus potenciais adversários, fossem políticos ou ideológicos, à inimigos do Estado, transformando-os, em certa medida, em presas a serem caçadas. A própria revolução russa teve sua dose de “loucura” após a derrubada do czar e a tomada do poder, quando Lênin raciocinou da seguinte maneira: “ora, se os socialistas revolucionários traíram outros para tomar o poder junto conosco, qual seria o empecilho para que me traíssem também e tomassem o poder?” A solução? Surgiram as primeiras prisões políticas e o início do regime totalitário. Mesmo assim, segundo o próprio Lênin, havia bem mais “traidores” à espreita, que esperavam apenas que uma oportunidade surgisse para que tentassem derrubá-lo do poder, o que ensejou outro grande absurdo: o Código Penal de 1926.

“(...)nos discursos judiciais pronunciados por Krilenko, as tarefas gerais do Tribunal Soviético: o tribunal era ‘simultaneamente o criador do direito...e o instrumento da política’. Criador do direito na medida em que durante quatro anos não houve código algum: os czaristas foram atirados fora e não tínhamos elaborado ainda os nossos. ‘E que não venham dizer-me que os nossos tribunais penais devem aplicar exclusivamente as normas existentes. Vivemos um processo revolucionário...Num tribunal revolucionário não devem renascer as sutilezas e os casuísmos jurídicos...criaremos um direito nosso e normas éticas novas’”. Essas eram as ideias repetidas pelo Partido, que visava legitimar a eliminação dos “inimigos”.

Absurdo primeiro, por conta do implacável e abominável artigo 58 e seus quatorze parágrafos, que abarcavam absolutamente qualquer coisa (um homem, ao descansar o copo em cima da mesa da cozinha, o fez sobre a foto de Stálin no jornal – obviamente sem perceber – e foi condenado à dez anos nos Gulags  por propaganda anti soviética); segundo porque, não obstante a abrangência, o referido artigo serviu de embasamento para a prisão dos “traidores” restante da época da revolução, ou seja, retroagiu para prender aqueles que, aos olhos do partido, cometeram crimes que não eram crimes, mas que Lênin decidiu posteriormente que eram crimes. Ainda, aqueles presos por esse artigo, já eram, desde logo, “vistos” como presos políticos e sofriam uma espécie de dupla punição, tanto pelos administradores dos campos, quanto pelos presos comuns. Surreal isso, não?! Pena que no Brasil tenha algo análogo acontecendo, vide o livro “Inquérito do Fim do Mundo”, organizado pela Promotora de Justiça Cláudia Piovezan, acerca do inquérito 4.781/2019, que tramita na Tribunal máximo do nosso país, e enseja algumas prisões e inquéritos contra opositores políticos. 

O domínio moral da população, assegurado principalmente pelos meios repressivos estatais e suas forças policiais, continha uma agravante, pela forma como foi propagado para as pessoas, sobre essa “presença” de espiões “imperialistas americanos”, que queriam “apenas explorar as riquezas e um povo já tão sofrido e pobre quanto o russo”. Havia sempre um nacionalismo exacerbado e embebido de sentimentalismo barato – com aquele conhecido “é para o seu bem”, mas que serve apenas de pano de fundo para a busca pelo poder –, algo como “querem dominar nosso país” ou “desejam roubar nossas riquezas”, e como diria Roberto Campos, um pouco mais tarde, os “nacionalisteiros” – ainda vou chegar nessa parte, mas para entender grande parte do caos e dos acontecimentos do nosso país, é preciso entender um pouco da história russa: as semelhanças são alarmantes.

Em um outro trecho, Soljenítsyn diz que quando Hitler fazia prisioneiros alguns soldados russos, simplesmente os soltavam nas fronteiras da URSS, pois sabia da “paranoia” de Stálin sobre os espiões e que ele mesmo trataria de “eliminar” os que retornariam. De fato, quando a polícia secreta russa, a NKVD, mais tarde conhecida como KGB, os prendiam, um dos primeiros questionamentos era: “se Hitler não poupa ninguém, por que mandou você de volta? Óbvio que foi recrutado pelos nazistas para espionar nossa pátria”. Eram assim, condenados aos Gulags, por pelo menos dez anos, pois “ninguém volta vivo de uma guerra”. Um outro ponto que o escritor narra, era que os dissidentes, os fugitivos ou mesmo os exilados, quando voltavam, também eram presos, ainda sob o pretexto de serem espiões. O real intuito, na verdade, era para que não propagassem aquilo que viram no mundo livre, criando uma narrativa de que eles queriam desestabilizar a mãe Rússia com falsas histórias, porque em “nenhum outro lugar do mundo havia liberdades”. Ou seja, além do estado policialesco material, físico, tentavam de todo modo cercear também o pensamento das pessoas: para quem não conhece outro modo de vida, o seu é sempre o melhor. 

Nos próximos textos continuarei relatando outras histórias reais contadas pelo escritor russo.

Arquipélago Gulag, Aleksandr Soljenítsyn.   



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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