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19/10/2023 às 08h00min - Atualizada em 19/10/2023 às 08h00min

A varanda de causos e risadas

IVONE ASSIS
Na semana passada vivi dois dias na roça. E aquilo foi mágico, porque trouxe de volta a menina que tanto correu descalça pelo quintal, desafiando as árvores a escalar em seus fustes, sem cair; a brincar em suas copas; bem como se deitar sob suas sombras.

No longo corredor que leva à represa, fui me lembrando das brincadeiras em carrinho de rolimã, feito com lobeiras. Enquanto o perigo mandava aviso aos pais, a diversão envolvia a menina em seus braços, com toda a força possível e, juntas, cortavam o vento, ladeira abaixo. As pálpebras se fechavam para que as meninas dos olhos não sentissem medo. Os cabelos se lançavam ao espaço, o couro cabeludo passava aperto para não os deixar ir embora. O córrego, cujas águas dançavam, ficava lá embaixo, à espera da menina, porque ele era o freio daquele carrinho de “rolimã”, nos casos em que as lobeiras não se desfaziam pelo caminho. Para os passeios sob os pés de mandioca, havia os carrinhos empurrados por uma forquilha. Esses tinham maior durabilidade, mas quem queria saber disso? A diversão é que importava. Como escreveu Manoel de Barros, “As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças”.

De acordo com Joana Simões de Melo Costa e outros autores (porque esse trecho tem sido atribuído a diferentes autores, então, pela incerteza, apegar-me-ei a esta): “O período da vida compreendido do nascimento até os seis anos de idade, chamado de primeira infância, constitui um período sensível para o desenvolvimento de diversas habilidades. Nesta fase da vida, há elevada plasticidade cerebral, o que significa uma maior capacidade de transformação do cérebro devido aos estímulos e experiências vivenciados. As habilidades desenvolvidas neste início serão fundamentais para o desenvolvimento de habilidades mais complexas em fases posteriores da vida. Desperdiçar as possibilidades da primeira infância significa limitar o potencial individual, uma vez que nem sempre é possível recuperá-lo plenamente com investimentos posteriores” (COSTA, et.al, 2016, p. 4, série Estudos do Comitê Científico – NCPI; 3).

Talvez eu soubesse de tudo isso que Joana Costa (2016) apregoa, por isso, não querendo atropelar meu desenvolvimento, optei por viver tão intensamente a minha primeira infância.

O tempo é algo incrível. É como se a história se repetisse, porém em outra roupagem. Agora, adulta, minhas reminiscências (que na infância “inexistem”) foram se passando diante de minha vida. Chegamos à represa, em busca dos peixes, mas estes estavam de férias e com a barriga cheia. O jeito foi limpar as plantas aquáticas que tomavam conta do espaço e ficar por ali a observar os macacos fazendo algazarra entre os bambus. A todo instante um vinha correndo e morrendo e rir, ostentando uma fruta roubada no pomar. Contavam a façanha aos companheiros e a gargalhada ecoava no mato. Que incrível foi aquela vivência de tarde primaveril.

Não demorou muito e as cigarras avisaram que a noite de lua nova chegava. O vagalume tum-tum foi alumiando o caminho de volta. De vez em quando um raminho roçava a canela só para avisar que era para tomar cuidado, porque tem cobras por ali. Era cada pulo, de assustar até os sapos.

Fomos embora, não sem antes dar uma paradinha na canoa, para ver se algum peixe já procurava pelo jantar. Que nada! Queriam era descansar. A sapaiada caiu na zombaria. O jeito foi ir para casa. Fogão à lenha aceso, anunciando o jantar, que cheirava longe. O pavão parecia gritar “Joããããããooooo”. Como não rir daquilo? Como escreveu Cecília Meireles, “Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo”.

A vida é mesmo uma poesia. Feliz aquele que sabe “poemar-se”. De um lado o galinheiro querendo dormir, do outro, a varanda de causos e risadas.



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