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12/10/2023 às 08h00min - Atualizada em 12/10/2023 às 08h00min

Tudo passa

IVONE ASSIS
No texto “A disciplina do amor” (1980), de Lygia Fagundes Telles (Rio de Janeiro: Nova Fronteira), a autora escreve sobre um episódio entre um cachorro fiel e seu dono, durante a Segunda Guerra, na França. De acordo com Telles, o cãozinho era amado por todos da Vila, que acompanhavam suas tardes, quando ele ia correndo reencontrar seu dono. Mas, um dia, o rapaz morreu em combate. Apesar de todos seguirem seus destinos (a noiva se casou com outro... e cada qual foi se reinventar), o cachorro, embora auxiliado por novos tutores e amigos, que o alimentavam e também o questionavam, continuou sua rotina à espera do dono e amigo. Até que, anos depois, o cachorro, já bem velho, em seu ato diplomático de espera, tombou ao chão, sob a esperança do reencontro e convicto de sua determinação, apesar de todas as opiniões e ações alheias e contrárias.

A dialética da democracia nos ensina a ter confiança e esperança, e isso não pode ser quebrado, em decorrência de fatos externos. Não se trata de abandonar ao tradicional, mas, sim, incorporá-lo às novas condições, para que fique ainda melhor e continue a cumprir o seu propósito inicial. A atividade legislativa é (e sempre foi) exercida por um conclave de envergadura maior para legislar imparcial, conforme exigências democráticas. Por mais que se troque o agente de maior representação, o que fica deve continuar no propósito, a fim de manter a esperança e a realização do objetivo, sem invalidar Executivo e nem Judiciário, porque o conjunto disso é a representação do povo.

É papel da corte agir ao lado dos demais Poderes, conforme previsto na Constituição para que se resolvam os problemas, sejam de soberania, ou não, a fim de evitar o desconforto ancorado da desculpa da legalidade. Como ensina Dimitri Dimoulis: “A obrigatoriedade e a supremacia jurídica da Constituição não significa, automaticamente, que os tribunais possam fixar seu sentido em última instância, invalidando os entendimentos contrários do legislador” (Rev. Bras. Direito Constitucional, São Paulo, n. 1, 2003, p. 217). Essa ideia democrática cabe em todos os atos e propósitos, e não pode perder sua essência.

Mas, o meu assunto é literatura, portanto, Arte da escrita, por isso mencionei as duas situações, apenas a título de ilustração, para dizer, todo órgão/sujeito é passível de erros, e está sujeito à desautorização. A decisão é do conjunto de poderes, e não do interessado no fato. E quando não há entendimento disso, o resultado são guerras declaradas. E numa guerra, não há heróis, o saldo é de dor e silêncio.

Quem estuda cães e gatos sabe da pseudoindependência do gato e da pseudosubserviência dos cães. O gato com suas sete-vidas se vê no direito de mandar e desmandar em guardião, mas, no íntimo de si, sabe de suas fraquezas, por isso faz de tudo para não deixar sua sujeira fora de lugar e nem se apegar a ninguém. Já o cachorro, ciente de vida única, não se detém muito na organização, prefere vencer pela atuação e presença. Ambos têm como objetivo sobreviver dentro de seus propósitos, e se possível, na vantagem.

Telles (1980), em seu texto “Sou um gato”, escreve: “Ele fixaria em Deus aquele olhar verde-esmeralda com uma leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque gato não obedece”. E continua: “Quando a ordem coincide com sua vontade, ele atende, mas sem a humildade do cachorro, o gato não é humilde, ele traz viva a memória da liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza a servidão”. Em seu outro texto “Tenho um gato”, Telles (1980) anuncia: “A conquista do gato é difícil, embrulhada, não tem isso de amor repentino”.

Tudo (exceto a morte) é passível de teimosia e revogação, e isso vale para cães e gatos. E fugir disso é se declarar radical e se firmar em zona de conflito, ferindo a democracia, que nada mais é que a soberania popular. Quando vejo guerras sendo declaradas, entre povos e nações, não tenho dúvida, o que predomina é ambição e teimosia e o que falta é diálogo e entendimento. Tudo passa.



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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