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21/09/2023 às 08h00min - Atualizada em 21/09/2023 às 08h00min

Caminho certo

IVONE ASSIS
Muito se tem falado e escrito sobre as diferentes formas de violência contra os indígenas. Desde o início da colonização do Brasil, os povos originários são alvos da brutalidade e da injustiça. Os bandeirantes causaram um verdadeiro extermínio indígena. Isso faz parte da história que ficou lá atrás, a questão é o que tem sido feito hoje. É comum ouvir discursos de devolução de terras aos “índios”, o problema é que isso soa muito mais como campanha do que justiça. Se fôssemos seguir “ao pé da letra” a reintegração de posse indígena, creio que seria necessário desconstruir o país e devolvê-lo a esse povo que aqui habitava quando chegaram os colonizadores, porque a confusão começou lá. Desse modo, eu posso estar enganada, todavia, em vez de engabelar os fatos com “devoluções de lotes”, o ideal e mais justo seria levar o progresso, a saúde pública, a educação, o conhecimento e todas as condições existentes, para que esse povo, que já sofreu tanto, possa também crescer e conquistar seus sonhos.

Se o indígena comete um delito é preso em cadeias comuns, mas, e se o indígena é um prodígio, quais instituições estão fazendo convocatórias indígenas, para que estes sejam diretores de empresas, jornalistas, diretores de cinema e outros, narrando assim sua própria história? Não se trata de incompetência, e sim, de falta de oportunidade. Há uma invisibilidade quanto à capacidade desses povos originários. A pesquisadora Diene Batista dos Santos, ao escrever sobre a mídia impressa e as censuras, durante o século XIX, explica que o “crescimento do poder da palavra”, “foi um dos fatores que contribuiu para” a queda da censura e, consequentemente, o surgimento de cidadãos formadores de opinião, reduzindo o analfabetismo e ampliando o conhecimento do povo. São esses “hábitos” que geram grandes oportunidades, e devem ser exercidos pelo querer, e não pela força bruta, como foi o processo “civilizatório”.

Por mais complicada que seja a gestação ou o parto, nenhum filho retorna ao ventre para fazer diferente, o que se faz é criar condições melhores para as gerações vindouras. É o desenvolvimento que abre espaço para o novo. Os indígenas são homens e mulheres com cultura diferente, contudo cheios de expectativas como qualquer outro. Havendo conhecimento, eles se formarão cientistas, médicos, artistas, terão escolas trilíngues, para que suas crianças aprendam a língua tribal, o português e o inglês. Enfim, poderão se tornar uma potência sem perder sua cultura.

A fim de dar sua parcela de contribuição, Dalva Pietá, escreve a obra infantil “Kauã”, um livro lindamente ilustrado por Gisele Daminelli e que conta a história emocionante de uma criança indígena. Nele, o protagonista, Kauã, ao contemplar as terras onde seu povo habita, a vegetação, as moradias... tudo serem consumidos pelo fogo, e nada ele conseguir fazer, porque eles não têm Corpo de Bombeiros, nem tampouco são assistidos por algum. O menino, para se salvar, foge para a cidade. Ali ele é castigado pela tristeza, pela saudade da família, da mata, da sua cultura. Agora ele era tão somente um órfão sem expectativa. Até que Kauã conheceu Fumaça, um cãozinho vira-lata, e eles se tornaram amigos inseparáveis. Indígenas não têm animais de estimação? Fumaça “não era” um animal, era um amigo, livre para ir e vir; e ficou porque se sentia amado e confiante.

Dentre as muitas lições que o livro “Kauã” nos traz, a liberdade é uma delas. Fumaça não era uma “vida escravizada”, dessas que se compram em comércios de animais; nem tampouco estava preso a uma casa. A amizade dos dois não implicou em mudar a cultura de nenhum deles, mas, sim, apertar os laços de convívio, respeito e confiança. O ir e vir é direito de todos, e Kauã e Fumaça sabiam e viviam isso.

Um dia, Kauã voltou para os seus, ou para o que sobrou deles. Fumaça, em sua liberdade de escolha, o acompanhou, correndo à frente e olhando para trás, de tempos em tempos, para se certificar de que estava no caminho certo.



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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