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14/09/2023 às 08h00min - Atualizada em 14/09/2023 às 08h00min

Torrencialmente

IVONE ASSIS
Embora a Líbia tenha sido berço das maiores e mais antigas comunidades judaicas da história, três séculos antes de Cristo, durante a Segunda Guerra, milhares de judeus foram escravizados pelas autoridades fascistas italianas. Durante a Segunda Guerra, quase um milhão de judeus foram consumidos ali pela doença, pela fome, pelo pogrom, em campos de concentração, em batalha, em trabalho forçado...

Derna, uma cidade árabe milenar, repovoada no século XV, e situada no vasto estado da Líbia, no continente Africano, com cerca de 100 mil habitantes, foi, dentre muitas batalhas, o cenário para a conquista britânica contra as tropas fascistas italianas durante a Segunda Guerra Mundial. Em 2014, o Estado Islâmico retomou parte da cidade, no ano seguinte nova batalha, até que o Exército Nacional Líbio retomou o controle.

A cidade cresceu e, embora portuária, banhada pelo Mediterrâneo e tenha um deserto e tantas outras possibilidades turísticas, sua navegação pelo Google Maps ainda é limitada. Nesta semana, com a tempestade Daniel, as chuvas foram implacáveis rompendo duas barragens de água no país, logo acima de Derna (ao norte), matando milhares de líbios. Mais de 10 mil pessoas continuam desaparecidas, a maioria foi arrastada para o mar, desolando o lugar. As “áreas de desastre” são muito maiores, com certeza. O colapso vai sendo revelado aos poucos, em especial, pela dificultadora divisão política.

O sul do nosso Brasil também continua sofrendo com as chuvas torrenciais, e a nossa impotência diante de tudo isso é grande. A força da natureza é gigante, daí a necessidade de se pensar a reconstrução com mais cuidado geográfico, para evitar reincidências.

Já nas Odes de Horácio, mais especificamente na Ode XV, do livro II, muito antes de Cristo, o autor se preocupava com o represamento das águas pelo homem, e suas consequências para as gerações vindouras. Muitos poetas, dos épicos aos contemporâneos, colocaram as águas represadas e as torrenciais em seus versos, e nenhuma preocupação é vã.

Em nosso entorno, aqui nesse torrão, quantas cidades, e campos, e vales, e fazendas... foram extintos em prol das represas? E quantas não foram consumidas pela fúria das barragens?

No site “Movimento dos atingidos por barragens”, o poeta Idalino, de Vargem Grande do Rio Pardo/MG (2020), escreve: “Até hoje inda me lembro como se fosse agora, / aqui tudo era sertão, / mas tudo era muito bom, / tem algumas coisas na minha memória. / Aqui tinha muitas lagoas, / mais não tinha nenhuma represa, / as águas corriam livremente, / em meio a natureza”.

E como não mencionar parte do protesto de Carlos Drummond de Andrade, publicado no Jornal do Brasil de 9 de setembro de 1982 (41 anos), em decorrência do fechamento das comportas para a concepção do lago da hidrelétrica de Itaipu? O poeta lamenta: “Sete quedas por mim passaram, e todas sete se esvaíram./ Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele a memória dos índios, pulverizada, já não desperta o mínimo arrepio. / Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes, aos apagados fogos de Ciudad Real de Guaira vão juntar-se os sete fantasmas das águas assassinadas por mão do homem, dono do planeta. Aqui outrora retumbaram vozes da natureza imaginosa, fértil em teatrais encenações de sonhos aos homens ofertadas sem contrato. / [...] Toda a arquitetura, toda a engenharia de remotos egípcios e assírios em vão ousaria criar tal monumento. / [...]. Sete boiadas de água, sete touros brancos, de bilhões de touros brancos integrados, afundam-se em lagoa, e no vazio que forma alguma ocupará, que resta senão da natureza a dor sem gesto, a calada censura e a maldição que o tempo irá trazendo?”

As chuvas continuarão a cair, a seu tempo, todos os anos, e a terra continuará a frutificar, também a seu tempo. Se as cidades não forem redesenhadas, é provável, as catástrofes avançarão. O progresso pede planejamento e a humanidade pede cuidado, para que os olhos de milhões não chorem, todos os anos, torrencialmente.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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