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07/09/2023 às 08h00min - Atualizada em 07/09/2023 às 08h00min

E recomeçamos

IVONE ASSIS
Hoje eu gostaria de falar sobre a comemoração do Dia da Independência, mas liberdade é viver em paz, por isso falarei de um assunto mais emergente, neste instante. Por mais que a humanidade ajuste os ponteiros, no afã de urbanizar rapidamente, e devido à nossa condição de eternos aprendizes, ainda não foi possível adequar as cidades ao meio ambiente. Assim sendo, todos os anos, os temporais provocam danos e perdas irreparáveis, infelizmente.

O 2023 já provocou choro em muitos lares. Nesta semana, um ciclone extratropical passou pelo Rio Grande do Sul e Santa Catarina, ceifando 21 vidas (15 de uma única casa). Mais delicado ainda foi uma vítima, que, durante o resgate, teve o cabo da cesta do socorrista rompido, e ambos desceram ar abaixo. A mulher não resistiu. Então, ao ver as famílias e também um governador, todos, emocionados, lamentando as catástrofes, entendemos o quão difícil e doloroso é para cada um, cada qual em sua singularidade e condição de agir ou não. E o quão necessário é que se repense os formatos de urbanização, política e serviço social, a fim de melhorar a condição de bem viver para sobreviver aos temporais vindouros, uma vez que a natureza segue seu curso, portanto cabe ao ser humano a adaptação, criando espaços adequados.

O autor Murilo Mendes (1901-1975), em sua literatura (de construção e fantasia), entre seus poemas modernistas, cheios de humor e paródias, traz poemas surrealista, de fé, de fundo histórico e social, dentre outros, porque sabemos, poetas costumam incorporar o seu momento aos versos. Escrever é libertação e edificação, e com Murilo Mendes não foi diferente.

Em seu poema “O sonho é vida” (publicado no Livro Terceiro, p.108, de “O visionário”, 1941, José Olympio), o poeta apresenta uma metáfora fundamental, em que ele exibe o ciclone. Embora o poema, possivelmente, se trate de um duplo do poeta, quero fazer uso dele para ilustrar a força avassaladora de um fenômeno como este ocorrido no Sul do país, e que muda todas as coisas, voluptuosamente, inserindo suas vítimas em nova peregrinação de um instante para o outro. Isso mostra o quanto nos enganamos quando alegamos ser impossível dar pausa no que está nos consumindo (trabalho, compromissos...), para nos dedicar a uma pequena prosa com o outro; ou o quanto erramos em cheio quando afirmamos ser impossível parar e recomeçar. Quando um caos se estabelece, de um segundo para o outro, tudo para. E depois do turbilhão só nos resta o recomeço. Nunca estamos preparados para a mudança, mas ela existe para mostrar a cada um o quão capaz somos, e o quanto desconhecemos de nós, e de nossa força.

O poema do poeta mineiro, de Juiz de Fora, Murilo Mendes, diz: “O sonho é vida / 1 Ele nasceu ciclone e não sabia, / Por isso é que as constelações, os braços, as pedras / Deixavam-no passar; / As virgens recuavam, as prostitutas também; / 5 Os bancos, os quartéis, as usinas / Fechavam as janelas, / O deserto mandava a esfinge na frente / Para lutar com ele; / Os arranha-céus cresciam para ele não alcançar; / 2 As orquestras se refugiavam nas vitrolas, / [...] Até que ele um dia, cansado, / Apagou o último seio-farol na noite de pedra, / Trancou-se nos limbos / 15 E encerrou com um sinal o ciclo dos tempos”.

Na intensidade de seus versos, é possível crer que o poeta apresente sua dor, sua busca, sua resiliência, sua luta contra o que nem ele mesmo entende o que é (uma doença, um querer, um não saber...) e, por fim, exaurido, concluiu seu ciclo, porque era de sua natureza ser o que era, e lutar. Afinal, “o sonho é vida” e não o contrário. Tudo está em constante movimento. Mas, ainda, podemos nos embasar em uma citação de Gaston Bachelard (1991), que diz: “O rochedo é assim uma imagem primordial, um ser da literatura ativa, da literatura ativista que nos ensina a viver o real em todas as suas profundidades e prolixidades”.

É dentro das profundidades e prolixidades humanas que encontramos o possível dentro do impossível. E recomeçamos.



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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