Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90
24/08/2023 às 08h00min - Atualizada em 24/08/2023 às 08h00min

Palavras, palavras, palavras

IVONE ASSIS
Ler é abrir a mente ao conhecimento, e aprender constantemente e ir além das palavras.

Rubem Alves abre a obra “Ensinar a alegria” (Ars Poética, 3. ed, 1994) com a frase “Muito se tem falado sobre o sofrimento dos professores. Eu, que ando sempre na direção oposta, e acredito que a verdade se encontra no avesso das coisas, quero falar sobre o contrário: a alegria de ser professor”. É tão bonito de se ler sabedorias assim. Sobretudo quando se trata de uma profissão tão importante como a do professor. Havemos de ter sempre em mente que toda e qualquer profissão passa pelas mãos do professor, seja de cátedra ou não.

É fato que existem os dissabores, e de vez em quando o professor é pego cortando cebolas. Contudo, como escreveu Rubem Alves, na obra citada, “o sofrimento de se ser um professor é semelhante ao sofrimento das dores de parto: a mãe o aceita e logo dele se esquece, pela alegria de dar à luz um filho”. É muito gratificante ensinar, sejam os primeiros passos ou não. Afinal, quem é aluno está sempre a aprender, e quem é professor está sempre a ensinar. Isso não invalida a ação contrária, pois quem ensina também aprende.

Lembro-me dos 15 anos em que fui professora, ministrando aulas diárias de computação gráfica em São Paulo e depois, Minas Gerais, em várias cidades. Em alguns dias eu pensava em desistir, depois me recompunha, dava-me uma reprimenda para deixar as tolices de lado e depois seguia muito mais leve, acompanhando o sucesso de meus alunos. Nada apaga esse encantamento.

De vez em quando reencontro um de meus ex-alunos. É um desabrochar de alegria a cada encontro, porque é sempre um encontro de amizade e gratidão. E quando os vejo tão bem, minha realização é ainda maior, porque sei que, de algum modo, fui parte daquele acontecimento.

Professores, alunos e escritores aprendem entre si, porque somos todos leitores. Aprendemos com as vivências, com os livros e com o convívio. Lembrando que nenhum dos casos se confundem, no entanto somos parte do todo, e a memória se encarrega de registrar isso para evidências futuras.

Quando ouço Kindertodtenlieder, de Gustav Mahler, por exemplo, não há como não chorar a dor do poeta e tradutor alemão Friedrich Rückert (1788-1866), cujo pseudônimo era Freimund Reimer. Ao ler seus escritos é fácil entender a escolha do codinome. Segundo consta, esse rimador dominava 44 línguas. De suas traduções destaca-se, por exemplo, o Corão; da sua poética tem-se a citada Kindertodtenlieder (Canções de morte de crianças), escritas para diluir parte da dor pela perda de dois de seus seis filhos, vitimados de escarlatina. O clássico Gustav Mahler, quase um século depois, musicou os poemas desse pai e hoje temos a oportunidade de chorar a dor do poeta enquanto nos emocionamos com a música de Mahler. 

Lendo uma tradução do pesquisador Daniel Martineschen (Friedrich Rückert: Kindertodtenlieder. Belas Infiéis, Brasília, 2020), deparei-me com alguns versos de Rückert, quem eu conhecera, inicialmente, citado por Rubem Alves, e depois lido em Hermann Hesse, na obra “O jogo das contas de vidro”, a qual li pela “indicação” de Alves.

Em seu poema, Rückert diz: “És uma sombra de dia, / E de noite um clarão; / Vives nesta litania, / Não morres no coração. // [...] Passou-se um ano agora / Desde que tu partiste. / E qual duas turvas horas / Este prazo me põe triste. // [...] Na perda poder ganhar: / Eis um duro começar, / E nenhures chegaria / Do que ao amor e à poesia. // O amor nada deixa escapar, / Não tem fora, só dentro há; / E o nada – ele não sabia – / Faz do algo poesia. // Não se foi o que vem de lá, / Fica na mente, não no pensar; / Eterno preso seria / Por ambos: amor e poesia”.

A poesia de Rückert, embora simples, é de uma profundidade como poucas. Quanto mais aprendo, mais preciso aprender. Nesse processo de leitura, estamos sempre em necessidade de leitura e interpretação, para que a escrita não seja apenas como Hamlet respondeu a Polônio, meras “palavras, palavras, palavras”.



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
Leia Também »
Comentários »
Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90