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17/08/2023 às 08h00min - Atualizada em 17/08/2023 às 08h00min

Um crítico

IVONE ASSIS
O mercado editorial está sempre em busca do movimento que gera vendas, entre eles estão as feiras de livros, os comerciais, as redes... O fato é que, marketing e vendas andam juntos, mas o sucesso de vendas está na conquista do leitor. O leitor é quem conecta o autor com o mundo, por meio de um processo de comunicação chamado leitura.

Segundo Candido (2006, p. 78), “Se a obra é mediadora entre o autor e o público, este é mediador entre o autor e a obra, na medida em que o autor só adquire plena consciência da obra quando ela lhe é mostrada através da reação de terceiros”, ou seja, “o público é condição do autor conhecer a si”, a “revelação da obra é a sua revelação”.

Primo Levi (1919), sobrevivente de Auschwitz, dentre seus muitos escritos, apresenta o conto “A garota do livro”, disponível em “71 contos de Primo Levi”, traduzido por Maurício Santana Dias, às páginas 483-487. Neste conto, um homem vai à praia a trabalho. É Umberto, que mata o seu ócio em Milão, caminhando na praia, enquanto luta contra a solidão e a doença dos pulmões. Em meio ao tédio e a brisa marinha, “De vez em quando, pegava o trem e” ia passar a noite com Eva. Voltava triste, “porque lhe parecia que Eva passava muito bem sem ele”. No seu vaivém, ele descobriu uma Bomboniera, instalada em “uma vila minúscula, cândida, quadrada, de dois andares, empoleirada numa elevação. Não tinha fachada”.

Aquelas arquitetura e decoração, sempre ornadas por “persianas pintadas de preto”, trazia uma “placa sobre o portão” com o estranho nome: Harmonika Grinkiavicius. A impecável Sra. Grinkiavicius era uma poliglota, metódica e de estilo elegante, porém retrô. Parecia estar sempre com pressa.

Com a saúde restabelecida, Umberto voltara a Milão. Leitor assíduo, ele iniciou a leitura das “memórias de um soldado inglês que havia combatido contra os italianos em Cirenaica, fora feito prisioneiro e confinado perto de Pavia”, depois fugira. Soldado comum, “gostava mais das garotas do que das armas”. Entre leituras trotadas ou a galope, Umberto imaginava as “loucas escapadas a dois, de bicicleta, pelas estradas escuras, em meio a rondas e toques de recolher, e temerárias aventuras no submundo do contrabando e do mercado negro. O retrato da lituana era memorável: incansável e indestrutível, exímia atiradora”. Ela era “exuberantemente vital; uma Diana-Minerva encarnada no corpo opulento [...] de uma Juno”. Umberto esboçava aquela lituana, “uma amante inigualável, impetuosa e refinada: poliglota e polivalente, sabia amar na sua língua, em italiano, em inglês, em russo, em alemão e em pelo menos outras duas línguas”. À 31ª página, deparou-se com o nome Harmonika.

“Umberto deu um pulo e fechou o livro”. Coincidência ou não, voltou àquela Bomboniera. “‘A senhora é lituana, certo?’. ‘Nasci lá [...].’ ‘fala muitas línguas?’ [...]. ‘como o senhor soube esses fatos sobre mim [...]’. ‘Neste livro’. Sentada próximo à janela, Harmonika “mergulhou na leitura”. O não-convidado também se sentou. Ali foram se passando “remorso, divertimento” e outros indecifráveis. Devolveu o livro, em silêncio. Depois: “Já se passaram mais de trinta anos, e eu sou outra. Até a memória é outra”. E continuou “Gostaria de ser a garota do livro [...]. Lembro-me de mim, tenra, nas mãos dele, como argila. Os meus amores... é isso que lhe interessa, não é? Eles estão bem onde estão: na minha memória, desbotados e secos, com uma sombra de perfume, como flores num herbário”. E concluiu: “Não sei quais são os mais belos. Escolha o senhor: vamos, pegue o seu livro e retorne a Milão”.

As personagens desse conto representam, sem dúvida, a revelação que Candido defende. E assim, cada vez mais, o papel do leitor ganha realce tanto na sociologia de leitura como na Estética da Recepção.

O escritor escreve pensando num preenchimento de si (o soldado), mas a ponte (história de Harmonika) até chegar no leitor (Umberto) tem um vazio que só poderá ser preenchido pela imaginação desse novo sujeito, o qual será, da obra, um crítico.



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