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13/07/2023 às 08h00min - Atualizada em 13/07/2023 às 08h00min

Evocador de memórias

IVONE ASSIS
A música é uma referência de memórias, pois, desde o ventre (dizem) a criança guarda memórias musicais. Não há como desvincular a música do nosso viver. Lembro-me do radinho de pilha que meu pai, na roça, ligava ainda de madrugadinha, para ouvir o Zé Bettio. Aliás, que figura icônica foi aquele homem. Enquanto a música, na voz de Agnaldo Timóteo, ia perguntando “Quem é?”, ele ia intercalando “é o Zé Bettio”. Papai sintonizava frequência e volume e, debaixo do nosso cobertor, íamos ouvindo canções tão profundas, que eram um verdadeiro aprendizado. Como uma música belíssima, cuja autoria desconheço, que dizia: “Quando plantei uma semente neste chão, com a esperança de poder colher o pão, pedi pra Deus mandar a chuva e o sol [...]. A esperança vai chegando na colheita…”. Naquela música eu via meu pai, com sua enxada, lavrando a terra e semeando os grãos. Que vida dura, mas abençoada, porque, apesar das dificuldades, ele amava os filhos. E quando há amor, a travessia do vale é mais suave.

Para mim, Zé Bettio, aquele radialista de “língua presa”, foi o melhor. Foi com ele que conheci a Rádio Record. Todas as manhãs ele pedia para “jogar água” no povo, dizendo: “joga água nele”, mas não sem antes implorar: “Acorda”. Ora, da minha cama eu ouvia aquilo e pensava: “em mim não acerta”, e se ele insistia: “Joga mais”, eu ria e pensava: “errou de novo”.

A boa música, de certo modo, nos sintoniza com a “subjetividade humana”, seja na sociedade, seja na cultura. Aquele radinho cantador me fazia pertencente. Aquela gente que “morava lá dentro”, nos conhecia e conversava conosco. Parece que ouviam nossas histórias e depois nos devolviam em poesias e canções. Posso assegurar que a boa música ultrapassa o limiar cultural e artístico, ela propicia bem-viver, seja individual ou coletivo.

A música faz parte da formação humana, e sempre esteve presente nos melhores momentos: casamentos, cultos, viagens, celebrações... infinitos. Ela é uma forma de ciência maior, capaz de curar feridas e mentes, capaz de impulsionar pensamentos e encorajar pessoas... por isso é tão importante saber selecionar o que ouvir, porque as memórias são susceptíveis ao estado emocional, portanto, são construções que pedem bom acabamento, para que atuem como boa influência. Afinal, em qualquer circunstância, a música liga o “power” do cérebro e do coração, na engrenagem humana. Então, para que o processamento seja positivo, a matéria prima precisa ser boa.
Para Plutarco: “É preciso viver, não apenas existir”. De fato, viver é muito maior que, simplesmente, existir. O viver é o conjunto dos sentidos, com suas razões e desrazões. Na complexidade do mundo tecnológico contemporâneo, onde todos estão conectados a tudo e desconectados da essência de viver, é delicado extrair a essência do bem-viver, contudo é importante colocar o pé no freio e respirar pausadamente, permitindo que a música flua, que a poesia exista... As vivências são singulares, e é isso que torna tudo tão bonito e admirável. Não existe perfeição humana, existem povos e culturas, indivíduos e peculiaridades, tudo em prol de um transcurso que nos faça feliz, nesse arcabouço humano, onde Deus nos concede um novo Sol todos os dias.

Para Adalberto de Paula Barreto, em “Terapia comunitária passo a passo” (p. 54): “Quando se canta, toca-se o coração, mexe-se com a sensibilidade [...] digere-se a emoção. A música [...] permite ao indivíduo entrar em contato consigo, com suas emoções. A música permite a eclosão da emoção subjacente que permeia o grupo ao ouvir a história de dor do outro”.

Mario Quintana, em seu poema “Canção do dia de sempre”, escreve: “Tão bom viver dia a dia... / A vida, assim, jamais cansa...”. E, ao pedir que não se nomeie os rios, justifica-se dizendo que: “Sempre é outro rio a passar”. Afinal, “Tudo vai recomeçar”! Nesse recomeço, é preciso lembrar que às vezes é preciso se esvaziar de si, para que o bem viver aconteça. Nesse processo, a boa música é uma excelente conselheira, capaz de propiciar harmonia, equilíbrio... permitindo-nos partilhar nossas emoções e aumentar nosso estoque de afeto. Trata-se de um prazer que promove a comunicação e fortalece as relações. Serve como um potencializador de empatia e, como eu disse no início, é um evocador de memórias.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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