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01/06/2023 às 08h00min - Atualizada em 01/06/2023 às 08h00min

Ivone com “E”

IVONE ASSIS
Há uma série canadense, na Netflix, “Anne com ‘E’” (2017), que muito me encanta. Após assisti-la duas vezes, optei por aprender mais de sua origem, foi aí que me deparei com o romance “Anne, de Green Gables” escrito por Lucy Maud Montgomery, e publicado em junho de 1908. Ora, eu sou filha desse mês, e não por acaso, em um ano também terminado com 8. Coincidência, semelhanças, sonhos, expectativas… Amor à primeira vista por um drama ficcional que apresenta dores várias abalroadas de coragem entrelaçada. Uma espécie de fascínio que me encorajou a compreender muitas sombras do ontem.

Tempos depois, deparei-me com a obra “Meus desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras” (2014), da premiada Eliane Brum, a qual se abre dizendo “nossa vida é nossa primeira ficção”.

O leitor pode estar se perguntando o porquê de tantas voltas para chegar ao assunto de fato, mas toda a questão são as analogias. Enquanto vou lendo e comparando, vou me certificando do quanto a literatura é rica e “para sempre”. E não por acaso, gosto muito desse narrar do cotidiano. O entrelaçamento de narrativas deixarei apenas a título de informação para aqueles que se interessarem a um estudo em literatura comparada. Afinal, boas obras merecem ganhar a investigação dos pesquisadores.

Sobre as afinidades entre as obras de Montgomery e Brum quero citar o “easter egg” “Meu nome é Ani, (com ‘i’ no final)”. Esse ovinho de páscoa é a pista literária e, sem dúvida, é o que mais conecta as duas obras publicadas e a série fílmica. Eu poderia procurar mais pistas, inclusive com outros autores, porque, além de ser algo fascinante, não deixa dúvidas sobre o vasto conhecimento literário da brasileirinha de Ijuí, esta escritora, jornalista e roteirista detentora de muitos saberes. Não é à toa que ler “Meus desacontecimentos…” seja tão envolvente.

Em “Meus desacontecimentos…” - excelente título, que nos remete a Manoel de Barros – Brum vai desfiando uma narrativa que, vez ou outra, me faz reencontrar pessoas queridas, cujos destinos se entreteceram ao meu. E, como a própria Brum escreve: “Como contadora de histórias reais, a pergunta que me move é como cada um inventa uma vida. Como cada um cria sentido para os dias, quase nu e com tão pouco. Como cada um se arranca do silêncio para virar narrativa”.

É nesse andarilhar lembranças que a narrativa se compõe. Em dado momento, observo que a parturiente, ou melhor, a autora, não por ausência de nomes, lança uma personagem, tia do eu lírico, cujo nome é Ivone. Claro, não sou eu (nem sequer nos conhecemos), mas o capítulo chama a atenção a começar pelo título “As mulheres-flores”, depois, quando, despropositalmente, encontrei “meu nome” lá dentro, aquilo foi quase um pertencimento. Uma nuvenzinha de entusiasmo ficcional se pousou sobre mim.

Ali, a autora apresenta uma tia que “havia sido uma das moças mais belas de Ijuí, com olhos verdes de gata brava, pele de leite e um cabelo noturno. Ela parecia a Ava Gardner”, e o eu lírico lamenta o fato de tanta beleza e doçura não ter sido capaz de poupar aquela musa de tanto sofrimento. Então completa: “Minha tia cuidava de uma filha que não caminhava, não falava, mas percebia a vida ao redor”, pois a criança, graças a um erro médico, nasceu com eritroblastose fetal. “Se no cotidiano ela se resignou aos canteiros ordenados da aparência, às cores discretas e às combinações comportadas, seu quintal era uma subversão da ordem. Lá ela plantou de tudo. E tudo misturado. Deixava essa babel exuberante crescer e multiplicar-se segundo os humores de cada espécie”, foi um modo de sobreviver, com resignação. Assim, “Na violência daquelas plantas entrelaçadas, crescendo sem poda e sem propósito, ela protegia sua porção vital. Impedia que a tragédia da vida, não como ela é, mas como nos obrigam a acreditar que seja, arrancasse o melhor dela fingindo ser erva-daninha”. E foi nesse jardim de palavras, adubado com desacontecimentos, que também me descobri Ivone com “E”.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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