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04/05/2023 às 08h00min - Atualizada em 04/05/2023 às 08h00min

Ignorante?

IVONE ASSIS
Lendo a obra “O conto dos contos”, um clássico literário italiano do século XVII, de autoria de Giambattista Basile, deparei-me com o conto “O ignorante”. Nele, o contista traz a história de Moscione, um “burraldo”, cujo pai (mais rico que o mar) manda-o a comerciar no Cairo, para que seja um igual. Pela estrada Moscione (que significa leso das ideias) vai encontrando pessoas virtuosas, e admirado leva-as consigo, abrindo inveja em muitos. Pois, a “malandragem” daquele roto desafiava a “sabedoria” dos príncipes. Com isso, a máxima: “Sempre foi mais elogiado o ignorante que se relaciona com homens virtuosos do que um homem sábio por frequentar gente incapaz, porque quando por causa de uns se pode ganhar comodidades e grandezas, por culpa dos outros se pode perder em bens e honra”.

Moscione, tido como “desatinado e incapaz”, inábil em “distinguir vagem de pepino”, era a tristeza do pai o qual, crendo “ver vários países e conhecer gente diferente desperta o engenho, afina o juízo e torna o homem esperto”, o envia a uma missão. “Depois de andar um dia inteiro”, Moscione se encontra com Relâmpago, um homem de Raio, que corria como um corisco. Ao comprovar sua ligeireza, Moscione convida-o a acompanhá-lo. Adiante, encontraram-se com “Orelha-de-lebre”, capaz de escutar o mundo sem sair do lugar. Em seguida, depararam-se com “Cegadireito”, um hábil atirador de balestra. Por fim, descobriram “Soprador”, um homem de todos os ventos, e “Costasfortes”, forte como ninguém. Formaram uma equipe. Um dia, em disputa por Belaflor, a filha de um rei, e usando a expertise e a fidelidade do grupo, Moscione venceu a batalha, mas em vez de se casar com a princesa, que lhe foi negada, este conquistou todas as riquezas daquele reino para si. De volta, divide a fortuna em partes justas com seus fiéis companheiros. E Moscione, muito rico, viu-se “um asno carregado de ouro”, embora reverenciado por todos.

O conto nos chama a atenção para o valor do trabalho em equipe, da importância em se ter determinação, e da grandeza de se saber ouvir bons conselhos. Ensina-nos ainda sobre a justiça e sobre a ferida aberta que o preconceito deixa cravada na vítima.

Como escreveu Voltaire (2013, p. 76), no século XVIII, em “O filósofo ignorante”: “a liberdade consiste no seu poder de agir, e não no poder quimérico de ‘querer querer’”. Foi agindo, e não lamuriando, que Moscione acreditou em sua capacidade, enriqueceu a si e àqueles que o ajudaram. E foi com amor e gratidão que ele voltou ao pai.

Já no século XX, Jacques Rancière (2002, p. 10-11), em “Mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual”, ensina que “Quem estabelece a igualdade como objetivo a ser atingido, a partir da situação de desigualdade, de fato a posterga até o infinito. A igualdade jamais vem após, como resultado a ser atingido. Ela deve sempre ser colocada antes. A própria desigualdade social já a supõe: aquele que obedece a uma ordem deve, primeiramente, compreender a ordem dada”. Afinal, “Não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas, e é sobre este saber, sobre esta capacidade em ato que todo ensino deve se fundar”. Assim sendo, ensina Rancière, “Instruir pode, portanto, significar duas coisas absolutamente opostas”, a primeira é o embrutecimento e a segunda, a emancipação.

“O ignorante”, de Basile, é uma leitura inquietante, por sua agudeza, em que o contista vai montando uma narrativa capiciosa, capaz de colocar a “inteligência” no filho ignorante, que é mandando embora de casa, para que conheça o mundo, e este adquire riqueza sem perder a dignidade; em contrapartida, Basile denuncia que uma sabedoria quimérica que enchia os palácios, cujo povo prefere a miséria à aceitação do outro. Essa inversão, possivelmente, é uma lição para que entendamos que, querendo, ninguém é tolo o suficiente que não possa encontrar o seu próprio caminho, bem como, ninguém é tão inteligente que não possa ser superado. Quem era o ignorante?


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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