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15/04/2023 às 08h00min - Atualizada em 15/04/2023 às 08h00min

A Faca Entrou

EDMAR PAZ JUNIOR
Foto: Reprodução/Internet
Muitas das atrocidades, e principalmente os pequenos, mas inúmeros, erros que as pessoas cometem – digo isso no sentido dos crimes e delitos que aqueles que se negam a conviver em harmonia com a sociedade, e que fazem do crime um modo de vida – são consequências de ideias e comportamentos incentivados e impulsionados pela degradação social, majoritariamente produzida pela terceirização da culpa, por “pensadores” que insistem em dizer que as pessoas podem ser o que quiserem, num sentido absolutamente literal. Theodore Dalrymple consegue apresentar uma versão da realidade de forma bem original, e que condiz com o que vemos.

O descolamento do que é certo, o ensejo de que todos são responsáveis pelos crimes que acontecem todos os dias – como uma justificação do delito, por exemplo, dizendo que “há uma lógica no assalto”, dito por uma ideóloga marxista – nada mais pode produzir do que a ideia de que ninguém tem culpa sobre os crimes; ou seja, se todos somos culpados (a sociedade) por um delito, então não há culpados. Indo além, isso resulta implicitamente na concepção de que o delinquente costumaz não precisa – e nem irá – ser punido, por uma conduta que fere e atinge o convívio social pacífico.

É preciso notar que, antes de olhar somente para os resultados que se nos apresentam – a saber, os altíssimos e absurdos números da criminalidade no país – sempre são precedidos por uma espécie de incentivo, mesmo que velado e inconsciente, contida na ideologia lastreada numa visão irrestrita de mundo – exatamente aquela que assevera que qualquer um pode ser o que quiser, indiscriminadamente.

O que o autor, e médico psiquiatra, pontua e consegue demonstrar bem em suas obras, não são apenas os resultados, mas também como a deturpação moral e a degradação da sociedade, juntamente com a irresponsabilidade, produzem cada vez mais a sensação de impunidade, o que consequentemente aumenta o nível da barbárie; essas influenciando diretamente os níveis de criminalidade, que por sua vez reforçam a deturpação e a degradação, numa verdadeira espiral que se retroalimenta.

A questão, porém, é que existe uma peça nessa engrenagem que pode ser substituída e possibilitar uma melhora significativa nesse processo de desenvolvimento e relações humanas que constitui a sociedade. Veja, não se pode falar em uma sociedade perfeita como produto de pensamentos ideológicos, mas sim, numa concepção bem aristotélica de justiça, tentar dar a cada um o que lhe é devido. “Nunca me pareceu correto que a rejeição ou a crítica implícita do modo de vida de uma pessoa são necessariamente uma rejeição à sua humanidade. Ao contrário, a capacidade de errar, se não for A característica distintiva da humanidade, é ao menos uma delas. O corolário da visão sentimental de que, para simpatizar com alguém, você tem de aceitar acriticamente a sua visão de mundo me parece falso e, em última instância, degradante. Ninguém consegue chegar a essa aceitação total, em todo caso. Há, ou deve haver, algo que ultrapassa os limites para qualquer pessoa”, diz o escritor.

Outra coisa que nos chama a atenção e nos “prende” às histórias contadas pelo britânico, é justamente a sua dose de realidade, permeada por peculiaridades que envolvem o submundo – um verdadeiro subsolo da existência e das relações humanas – que são as prisões.

São narrados, assim, fatos que marcaram os mais de 15 anos de Dalrymple trabalhando no sistema prisional inglês, que, de certa maneira, guarda muitas semelhanças com o que vivemos atualmente no Brasil – talvez por uma espécie de efeito tardio dos mesmos erros: o que a ideologia progressista causou na Inglaterra na década de 90, e produziu seus efeitos por lá, não nos serviu como aviso e, de modo contrário, foram incessante e insistentemente repetidos aqui, resultando quase que de forma idêntica nos mesmos problemas que eles viveram na década de 90 e no início dos anos 2000.

Histórias sobre agentes penitenciários, presos e críticas ao próprio sistema burocrático governamental, são contadas com uma boa dose de ironia, mas que impactam por mostrar como funcionam as estruturas das instituições. Um dos exemplos, é quando conta a história de um agente que salvou a vida de um detento, arriscando a própria, de um incêndio numa cela. Ao perguntar, quando o mesmo voltou do afastamento, se seria condecorado, o funcionário lhe respondeu que provavelmente seria repreendido, justamente porque não seguiu o procedimento. 

“O procedimento correto, aparentemente, cuja falha em seguir justificava a reprimenda, seria chamar a brigada de incêndio e esperar que ela chegasse. Talvez o homem morresse como resultado disso, mas ao menos o procedimento correto teria sido seguido. Eis aqui a administração moderna em ser ‘reductio ad absurdum’: ela é tão temerosa de deixar qualquer iniciativa a cargo dos funcionários, pois eles podem cometer um erro ou exercer a própria inteligência, que prefere que as próprias regras sejam seguidas até as consequências mais extremas.”

Diz ainda que “O pressuposto da burocracia moderna é de que procedimentos novos e ampliados são sempre melhores que os antigos; e, mesmo que isso se revele indiscutivelmente falso em algum estágio posterior, bem – isso é burocracia, não amor, o que significa que nunca há necessidade de pedir desculpas.” Como diz Taleb, “os burocratas são pagos pelo governo para encontrar soluções, não para resolver os problemas”.

Em outro momento, contando como lidava com presos que insistiam em lhe pedir remédios alucinógenos, e muitas vezes o ameaçavam quando contrariados, o psiquiatra relata como a realidade se choca com as “teorias de laboratórios”, que muitas vezes simplesmente desprezam o que acontece na prática. “Praticando medicina, nunca vi quaisquer consequências mais graves da abstinência de heroína – nem uma sequer em centenas de casos. As dramáticas representações em livros e filmes são exageros brutais. Mas a tradição está tão firmemente enraizada que é, ao que parece, inerradicável; literatura e cinema de digladiaram com a verdade farmacológica e emergiram triunfantes. Quando digo aos leigos e até mesmo para alguns médicos que a abstinência de heroína não é tão grave, que dirá perigosa, eles acham difícil acreditar em mim.” A maioria das pessoas prefere acreditar no que as mídias mostram como ficção, do que aquilo que é apresentado por quem viveu a experiência de fato.

Por todos os anos em que trabalhou na prisão, e como conviveu com muitos, o escritor ainda faz um elogio aos agentes penitenciários, que são verdadeiros heróis anônimos da sociedade. “Agentes penitenciários com frequência precisam encarar coisas que poucos de nós teríamos de enfrentar, quanto mais aceitar. É verdade que alguns prisioneiros saúdam os agentes como velhos e saudosos amigos ao retornar pela enésima vez ao “casarão”, mas outros exibem uma hostilidade implacável contra eles e os insultam terrivelmente. É raro que eles respondam na mesma moeda, e inúmeras vezes testemunhei agentes levando cusparadas na cara sem reagir com violência. Na vasta maioria dos casos, demonstram um autocontrole admirável, do tipo que poucos de nós somos instados a exibir, ao menos não repetidamente e quase todos os dias.”

A maioria dos presos que ali estão, antes de vítimas da sociedade, são os produtos do incentivo à desresponsabilização de suas condutas e da terceirização do ato criminoso: o título do livro é justamente a resposta de um dos detentos à pergunta do psiquiatra, “por que você o matou?”: “Doutor, não foi minha culpa, a faca entrou”.

A Faca Entrou, Theodore Dalrymple.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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