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13/04/2023 às 08h00min - Atualizada em 13/04/2023 às 08h00min

Manuscritos

IVONE ASSIS
Relendo “Memórias póstumas de Brás Cubas”, e dividida entre o dever crítico a que eu me propunha e o prazer literário de se ler sem compromissos, conforme ia revisitando as páginas daquele romance escrito em um Brasil monárquico, divertia-me com a perspicácia daquele narrador sobrenatural, que indicava seu “emplastro Brás Cubas” para todas as curas, o mesmo remédio que foi incapaz de curar suas fraquezas e casmurrices. Mas, ao mesmo tempo, fui abismando-me com a denúncia literária que Machado de Assis vai aplicando em sua escrita. Trata-se de uma obra além de seu tempo, ouso dizer.

A dedicatória, feita aos vermes, já é um quebrar de regras, que me espanta ainda no século XXI, imagine para o leitor do século XIX. Mas, avancemos para o corpo, não o do defunto, e sim, do livro em questão. Entre as muitas riquezas do romance, o narrador vai dialogando, e até aconselhando, o leitor, enquanto desfia farpas sobre os absurdos da sociedade daquele período.
Embora escrito em 1880, a narrativa aborda o recorte de 1805 a 1869, portanto, tem-se aí um Brasil Colônia (de Portugal) até 1815, e um Brasil Reino Unido a Portugal e Algarves até 7 de setembro de 1822, data em que foi proclamada a Independência do Brasil, tornando-o uma nação com autonomia.

Da Primeira Revolução Industrial, pode-se assegurar que o Brasil do início do século XIX só usufruiu, remotamente, do transporte (ferrovias e navios a vapor), pois foram essas embarcações navais a vapor que abriram espaço para a exportação do café brasileiro. Quanto ao “start” das ferrovias, este foi possível somente após a instalação da corte portuguesa no Brasil. A "febre ferroviária" só ocorreu, de fato, no Brasil independente, a partir de 1835, com a Lei 101, promulgada por Diogo Antonio Feijó, o conhecido Padre Feijó, que atuou na justiça, no Estado e na Igreja. A linha férrea abriu caminhos para o açúcar, o café, o tabaco e outros, fortalecendo a economia brasileira.

Com as estradas de ferro, o país passava a outro nível econômico, especialmente nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Rio de Janeiro. E era neste último, o Rio de Janeiro, que estava Machado de Assis, José de Alencar e tantos outros autores, que, tendo estudado, agora faziam carreira literária, jornalística, filosófica, política, no Direito e outras. O país fervilhava em acontecimentos, e foi nesse burburinho de cargos e crescimento demográfico e econômico que José de Alencar se tornou presidente de província.

Como escreveu a psicóloga e escritora Angela Duckworth, “Todo livro consiste numa conversa com seu autor. Sendo assim, é preciso ter critério com os livros que se lê” (Prefácio de “Como Mudar”, Katy Milkman). Ora, casado com Georgiana Augusta Cochrane, Alencar teve seis filhos, e um deles, Mário de Alencar, suspeita-se a crítica ser filho de Machado de Assis. A razão pela qual retomo essa suspeita é apenas para ilustrar as personagens de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, em que Brás Cubas trai o melhor amigo (Lobo Neves) com sua mulher (Virgília) e de cujo relacionamento nasce um menino. E isso vai dando sinais de que toda obra carrega um pouco do autor, de sua história, de seus segredos, e assombros, e (in)verdades...

“Memórias póstumas de Brás Cubas” é um romance que vai comparando tudo a um livro. Assim sendo, quando se viu espreitado pela morte, entendeu que sua edição já estava defasada. O livro no Brasil-colônia era um objeto de luxo, e apenas alguns raros letrados o tinham. Tratava-se de um produto impensável para o povo popular. O livro, era considerado, de início, um produto proibido, haja vista pudesse anunciar ideias subversivas, funcionando como um mentor, ou um criador de mentes pensantes. Sem acesso ao livro e sem conhecimento de leitura, o povo vivia uma ignorância que o conduzia à subserviência de uns poucos, dividindo, assim a nação dos (i)letrados em dois tipos de acabamentos: os “livros” com capa dura e os meros “manuscritos”.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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