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30/03/2023 às 08h00min - Atualizada em 30/03/2023 às 08h00min

João Felpudo e seu coadjuvante

IVONE ASSIS
Dos meus primeiros contatos com a leitura estava o livro de Casasanta. Dos muitos contos que habitavam aquela obra, cito aqui João Felpudo. Esse conto foi impactante a uma primeira leitura porque os meninos do livro deviam ter a mesma idade minha, e aquele João Felpudo poderia ser qualquer um dos “bobos” que caçoávamos na rua, a nossa cidade era cheia deles: o Painha, o Bacada... e assim se seguia. Aquela realidade do conto era bem melhor que a minha realidade, e trouxe elementos relevantes para a minha compreensão de cidadania. O respeito que o menino teve para com o mendigo foi um choque de consciência, que o mundo da literatura infantil me deu.

João Felpudo facultou-me a possibilidade de refletir sobre o que fazíamos com aqueles mais excluídos do que nós. Aquela leitura imprimiu em mim o sentimento de consciência social. Costumo dizer que somos o resumo das histórias lidas, porque toda história deixa uma contribuição em nós. Algumas são tijolinhos em nossa construção, outras são material de acabamento, mas há também aquelas que são mera pintura de parede externa, essa última não faz morada em nossa memória, mas, sim, na prateleira do esquecimento. Afinal, “Há duas espécies de livros: uns que os leitores esgotam, outros que esgotam os leitores” (Mario Quintana, “Dos livros”).

Hoje, fico a pensar no quanto os livros exercem influência na etapa infância. É ali que os relatos ganham sentido, e dali extraímos muitas interpretações para nosso oceano futuro. Se João Felpudo era tido pelos meninos do conto como o sujeito que não gostava de tomar banho, a história em si era muito mais profunda, porque nos mostrava um sujeito sem oportunidade e abandonado.

Ao final do conto, o pequeno leitor aprende ainda que, com amor e respeito, com um ser pode mudar a vida de alguém, para melhor.

João Felpudo (Der Struwwelpeter) tem vida longa, nasceu em Frankfurt, na Alemanha (1845), sob a criação do médico Heinrich Hoffmann (1809-1894), com ilustrações em litografia coloridas, belíssimas, em que a narrativa ilustrada e a narrativa verbal vão se entrelaçando em um verdadeiro encantar do leitor; a obra chegou ao Brasil pelas mãos – melhor, pela tradução – do desembargador Henrique Velloso de Oliveira (1804-1861), sob o título “João Felpudo: histórias alegres para crianças travessas”; em 1942, ressurgiu como convidado à nova tradução, pelo poeta modernista Guilherme de Almeida. Nesta versão, João Felpudo era uma criança preta que sofria “bullying” dos meninos que pareciam estar com o “cão no couro”, como reprimenda, o padre os mergulha no tinteiro de nanquim, essa era a cultura literária da época, pois acompanhava o triste preconceito racial que se encobria as sociedades em todo o mundo. A Melhoramentos vendeu 36 mil exemplares dessa tradução.

Mais tarde, já em 1954, nasceu o João Felpudo da mineira Lúcia Monteiro Casasanta, não se trata de uma tradução da obra, mas, possivelmente, um filho da versão de Hoffmann, registrando-se aí a influência exercida pelo conto sobre os leitores e educadores. Sua roupagem trazia ilustrações preto e branco de traço bem simples. Foi na versão desta última que eu me encontrei com João Felpudo. E foi lendo Casasanta que percebi um João Felpudo triste e caçoado pelos “meninos sem noção”, mas, igualmente, amparado por Luisinho, o menino que exercia a sensatez.

João Felpudo foi um quebrador de paradigmas na literatura infantil do século XIX, pois em um tempo em que as histórias infantis eram escritas pensando no espelho que os pais queriam para os filhos, eis que surge o complexo João Felpudo, representando o oposto de tudo, porque Heinrich Hoffmann queria mostrar como os meninos se comportavam de fato. Na versão de Casasanta, a autora continua a apresentar as travessuras dos guris, mas já apresenta uma sugestão pautada no valor humano, e a personagem abandonada foi tão surpreendente que, ao lado de Luisinho, seu herói, vemos somente a dupla João Felpudo e seu coadjuvante.


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