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25/03/2023 às 08h00min - Atualizada em 25/03/2023 às 08h00min

Quaresma

EDMAR PAZ JUNIOR
Foto: Reprodução/Internet
Existem alguns textos que são praticamente irretocáveis. Assim como o próprio Corção diz no início de sua crônica, também peço licença ao leitor para reproduzi-lo, afinal, realmente não há serviço melhor que poderia fazer nesses tempos, do que transcrever as palavras de um gênio da literatura brasileira. 

“Creio que não posso prestar melhor serviço ao leitor do que transcrever o Capítulo XLIX da Regula Monachorum de São Bento, escrita há quatorze séculos, e especialmente adequada aos dias de hoje em que os homens e as nações correm freneticamente atrás de coisas vãs. Inclinemos, pois, nossos ouvidos aos conselhos e exortações de um terno Pai, e ouçamos o que nos diz o Patriarca sobre a observância da Quaresma:

‘Na verdade, em todos os tempos deve avida de um monge ater-se à observância da Quaresma; como, porém, tal generosidade só se encontra em poucos, recomendamos que todos guardem maior pureza de vida nos tempos de Quaresma, para apagar, nestes santos dias, tantas negligências de outros tempos. E isto só será alcançado de modo conveniente se refrearmos todos os vícios e nos entregarmos à oração acompanhada de lágrimas, à leitura santa, à compunção do coração e à abstinência.

Acrescente, pois, cada um, alguma coisa à tarefa ordinária de nosso serviço, orações particulares, restrições de alimentos e bebidas; e assim cada um ofereça a Deus espontaneamente, com alegria do Espírito Santo, algo acima da medida prescrita, isto é, subtraia de seu corpo no comer, no beber, na facilidade de falar e de rir – e assim espere a Santa Páscoa, com toda a alegria do desejo espiritual.’

E enquanto, pela voz dos mestres espirituais, a Igreja lembra a todos os fieis e não apenas aos monges a necessidade de ter a alma orientada pelos santos desejos e acautelada contra os obstáculos do mundo, pela voz mais áspera mas não menos amorosa da Liturgia da Quaresma, a Igreja nos lembra que todo esse deslumbrante e variado universo atrás de cujas riquezas correm os homens a se acotovelarem, a se magoarem, a se comerem, é pó e voltará ao pó.

Por um maravilhoso milagre, esse pó aqui e ali se adensou, tomou forma de estrela, e depois, aqui e ali, num grão de pó um pouco maior, e tornado planeta azul, com águas e terras separadas, o pó tomou forma de rosa, forma de ave ou peixe. E por um milagre mais maravilhoso chegou a tomar forma especial e privilegiada que mereceu o favor de um sopro do Espírito, mas é preciso lembrar ao homem que, esquecido ou desprezado o espírito, que o destaca, que o transcendentaliza, que o salva do nada antes de o salvar do pecado, ele é pó e ao pó volverá, cumprindo assim, em termos bíblicos ou termodinâmicos, a lei fundamental do universo físico, a lei do pó.

‘Lembra-te homem, que és pó e ao pó volverás’, diz a Igreja na Quarta-Feira de Cinzas, para mostrar a derrisória ilusão dessa correria desenfreada atrás de um tudo que é um nada e atrás de riquezas que são pó.

A voz de nossa Mãe tem estranhas inflexões. Acabei de dizer que ela nos lembra que somos pó e ao pó volveremos; mas quem ouviu muitas vezes as muitas coisas antigas e novas que nossa Mãe nos ensina, quem se habituou à amplidão de seu timbre e ao jogo de contrastes com que ela compõe e modela uma Sabedoria que tem as formas e as simetrias de um Corpo, quem se afeiçoou às oposições e conjunções que totalizam a imensa e consumada lição de nossas Mestras, sabe que o que ela diz principalmente, nesta exata passagem do rito da cinza, é precisamente o contrário do que diz palavra por palavra. Com provocante e solícita dialética a Igreja nos diz que somos pó e ao pó volveremos exatamente para nos lembrar que somos infinitamente mais do que toda essa mirifica poeira universal. Se nos esquecemos dos dons de Deus, se desprezamos o Sangue doado por nosso Salvador, se claudicamos em nossa dignidade, se num só instante perdemos de vista o senhorio de Deus, então, sim, então tudo o que somos e todo o que fazemos com tanta arrogância e com tanta avidez não passa de pó, que durante alguns anos perambula, gesticula, chora, ri, sonha ser Imperador do Planeta, e logo começa a se decompor, a cumprir a inexorável lei da matéria, a lei do pó.

A Quaresma, ao contrário, os reanima o espírito, e nos convida a desejar, com desejo cada vez maior, o Reino de Deus, e nos recomenda os meios para desligarmos cada vez mais os desejos do pó.

O mundo moderno, que tanto se compraz em sua modernice, é um mundo violentamente ávido de pó. Um de seus hemisférios ostenta a violência de uma contestação parricida, de um inexcedível orgulho, com o resultado de uma ridícula impotência sem igual na história humana. O outro hemisfério ostenta a multiplicação pueril e demente de coisas sub-humanas que enchem a vida de violentos desejos de subvida. Mas no âmago mais escondido e recatado da Esposa sem manche nem ruga subsistem, queiram ou não os demolidores da Igreja, os violentos desejos de arrebatar o Reino de Deus, as divinas violências voltadas todas para o Pai. Abriguemo-nos nesse jardim fechado, nesse paraíso peregrino, e tenhamos a firme certeza de que é assim, escondidos em Deus que, inclusive, melhor serviremos nossos irmãos.”

Quase ameacei querer discordar do final e dizer que existe algo além, que esse jardim fechado, esse “oásis” em meio à tanta loucura que impera no mundo, além de nos ajudar a servir melhor nossos irmãos, seria essencial para a quietude que abre as portas para nossa vida espiritual e, consequentemente, estar na presença de Deus. Mas, no final das contas, o que é a Caridade, se não o amor ao próximo? Como Corção diz, a Igreja é repleta desses paradoxos místicos, e o aprendizado da vida interior, o silêncio do recolhimento, só faz sentido quando utilizamos o que aprendemos e crescemos em favor do outro. 

Quaresma, Gustavo Corção. 



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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