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16/03/2023 às 08h00min - Atualizada em 16/03/2023 às 08h00min

Enchentes de bem-viver

IVONE ASSIS
Por toda a vida, o mundo sempre teve sérios problemas com as enchentes. A natureza segue seu curso. É comum pensarmos que ela se vinga daqueles que atravessam o seu caminho, despejando sua fúria, impiedosamente, mas não se trata disso. A natureza quer, apenas, cumprir a sua missão. Quando sol, seca; quando chuva, enchente... A natureza foi feita para refletir na reprodução da Terra, para que as espécies continuem a existir. Com o crescimento demográfico e a escassez financeira de uma grande parcela da humanidade, atrelados ao descaso governamental, as cidades foram sendo fincadas ao chão, sem planejamento. O resultado não poderia ser outro senão a catástrofe, porque as águas seguem o veio do rio, descem nas encostas, cumprem o seu papel. Não há torneiras em nuvens para dosagem de chuvas e trombas d’água. A vegetação nativa é forte o suficiente para lidar com as intempéries, mas, arrancada de seu solo, nada pode fazer. A solução estará presente quando as gestões públicas priorizarem o bem-viver da sociedade em seu todo, desobstruindo as cidades e contratando profissionais da geografia, filosofia da arquitetura, engenharias, saúde, paisagismo, nutrição, psicologia, artes... e áreas afins, em prol de planejar as cidades adequadamente.

O tcheco, historiador e teórico da arquitetura, Dalibor Vesely, por exemplo, questionou o papel da hermenêutica e da fenomenologia (ciência e consciência) como parte integrante da arquitetura, para que haja comunicação entre o projeto e a natureza. Em sua obra “Architecture and the conflict of representation” (1985), Vesely escreve sobre o fato de a forma arquitetônica surgir atrelada ao desenvolvimento da música moderna e da pintura.

Nenhuma mudança dessa magnitude ocorre da noite para o dia, mas também não é impossível, as academias estão aí para isso. Claro, não estou a defender igualdade para todos, porque o impossível não existe, mas, sim, defendo dignidade para todos, e isso é mais simples do que aprender a ler, basta, tão somente, ter bom senso, conhecimento e compromisso. Os custos são altíssimos, mas nenhum valor é maior que o PIB de cada município, haja vista a produtividade de cada lugar ser equivalente à população, e tudo o que se faz, financeiramente falando, é a partir do suor do próprio torrão. As discrepâncias existem porque a administração pública é falha em conhecimento e, às vezes, em decoro. Falta uma boa dose de conhecimento e competência e outra de amor, para que as cidades sejam melhores planejadas.

Mia Couto, em sua obra “Poemas escolhidos” (2016, p. 24), escreve: “A adiada enchente / Velho, não. / Entardecido, talvez. / Antigo, sim. / Me tornei antigo / porque a vida, / tantas vezes, se demorou. / E eu a esperei / como um rio aguarda a cheia. / Gravidez de fúrias e cegueiras, / os bichos perdendo o pé, / eu perdendo as palavras [...]”. O poeta chora sua dor, enquanto narra a espera daquilo que não chega, que não acontece. Quantos milhões de pessoas estão nesta mesma espera do desconhecido? Enquanto esperam aquilo que ainda não tem nome, vão perdendo seu próprio nome, dentro do vazio que os consome, sob a sombra do descaso para com aqueles que são lançados à própria sorte.

A arquitetura e o urbanismo é, sem dúvida, uma forma de se pensar e se questionar o mundo, e para se compreender essas indagações, faz-se necessário colocar o sujeito em evidência, haja vista tudo o que existe é para atender à demanda humana, em seus espaços, seja por necessidade ou mero desejo. Assim sendo, a psicologia, por exemplo, é um campo essencial para a melhor compreensão do bom planejamento urbano, contribuindo na análise e no comportamento humano, para que haja harmonia entre o ser e a natureza, em seu espaço, para uma ocupação consciente. Agindo assim, teremos mais conhecimento e comunicação, com menos enchentes trágicas e mais enchentes de bem-viver.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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