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02/03/2023 às 08h00min - Atualizada em 02/03/2023 às 08h00min

Objeto em si

IVONE ASSIS
Diariamente leio e/ou escrevo sobre algum assunto que me chama a atenção. Penso que não escolho estas obras, mas, sim, elas me escolhem, porque, de algum modo, elas vêm parar em minhas mãos, ainda que eu jamais tenha ouvido falar sobre. É um movimento cíclico que, simplesmente, acontece, e cabe a mim escolher o que fica e o que vai embora. Isso se explica quando observamos o movimento do mundo, nesse vaivém, onde respirar é a maior certeza de vida que temos, enquanto o silenciar é uma constante que anda a tiracolo desses seres viventes. Nos últimos tempos, parece que, de tanto girar, o mundo ficou de cabeça para baixo, e o silêncio entalou na goela dos justos (Se é que existem justos). E, de repente, em meio a tantas sombras, vamos perdendo nossa identidade em prol do “agora é assim, agora é assado”. Respeito, amor próprio e bom senso são atos inerentes à vida, e não há como exercer um e ignorar o outro.

Carlos Drummond de Andrade é um autor que gosto muito, porque é questionador e está sempre antenado ao entorno geral, como devem ser os autores. É triste ver que, em detrimento do que está em voga, e pensando exclusivamente na fama e, lógico, no número de vendas, muitos escritores se vendam à bilheteria, passando por cima de seus próprios conceitos, pela simples ilusão de “estar na crista da onda”. Quanta bobagem! Quando a literatura é boa, ela atravessa os milênios. Vejamos a bíblia sagrada, os filósofos, os clássicos, a Epopeia de Gilgamesh, e tantas outras obras que sobrevivem ao espaço-tempo, como se fossem escritas para o agora.

A palavra é mágica, e sempre traz algum aprendizado. A tecnologia é algo que me fascina absurdamente, mas não posso deixar de reconhecer o mérito das tábuas de argila, pois se estivessem armazenados em chips os livros da Biblioteca de Nínive, os arqueólogos não teriam resgatado a história.

A boa literatura tem o poder de despertar a criticidade no leitor, tornando-nos melhores pensadores e entendedores daquilo que a palavra registra. Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Mario Quintana, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Ziraldo... são alguns exemplos de escritores contemporâneos (ou quase) que nos levam a considerar o valor de se interpretar a palavra em sua essência literária, sem perder a inventividade. São autores que cutucam a história pincelando o cenário vivido, enquanto penduram a palavra nas pautas e linhas, ora ou outra zombando da nossa incompetência enquanto leitores críticos.

Não se trata de atender aos anseios desse ou daquele público, mas, sim, cativar o leitor com uma “leitura de mundo”, envolta na ludicidade, na poética, no prazer literário da palavra narrada e na magia da interpretação. As crônicas, por exemplo, vão evidenciando suas amarrações entre ponto de vista e realidade, de modo que a palavra registre o cotidiano singular ou geral, em um propósito único que é o prazer da leitura, em que o leitor vai se deparar com o que lhe é trivial, mas diferente ao mesmo tempo. É um artifício capaz de convidar a diferentes interesses e reflexões.

No poema “O constante diálogo”, de Carlos Drummond de Andrade, publicado na obra “Discurso de primavera e algumas sombras” (1977) (Cia das Letras, 2014, p. 131-132), o poeta diz: “Há tantos diálogos [...] Escolhe teu diálogo e tua melhor palavra ou teu melhor silêncio. Mesmo no silêncio e com o silêncio dialogamos”. Na profundidade desses versos vou interpretando a simplicidade da vida e o valor do diálogo. Quando, de um lado nuvens da IoT se sobrecarregam de dados, do outro, nuvens da atmosfera se mantém na disciplina de refrescar o ar, ambas em seu valor, ora silenciando os céticos, ora dando voz aos poetas. E a palavra segue registrando cada acontecimento, depois guarda-os no livro.

De modo geral, podemos dizer que o bom livro nos chama a atenção para o princípio aristotélico, o qual propõe o prazer pela arte, indo além da admiração do objeto em si.



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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