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18/02/2023 às 08h00min - Atualizada em 18/02/2023 às 08h00min

Ortodoxia – Parte II

EDMAR PAZ JUNIOR
Foto: Reprodução/Internet
“O cristianismo veio ao mundo em primeiro lugar para afirmar com violência que o homem não tem que olhar somente para dentro, mas olhar para fora, contemplar com espanto e entusiasmo uma companhia divina e um capitão divino. A única diversão de ser cristão era que um homem não era deixado sozinho com a Luz Interior, mas reconhecia de modo definitivo uma luz exterior, tão bela quanto o Sol, clara como a Lua, ‘terrível como um esquadrão com bandeiras desfraldadas’ (Cântico dos cânticos 6.4)”.

Cada vez na história que o homem buscou ser dono de si mesmo, se comprovou que foi, e sempre será, necessária uma ordem superior. Toda tentativa de dizer que o homem se basta, foi sucedida por um colapso social. A resposta à pergunta que o filósofo inglês deu, sobre em que o homem deveria acreditar se não em si mesmo, se tornou um pequeno tratado sobre a Beleza do Cristianismo, e como a verdadeira coerência de acreditar em alguma coisa só faz sentido pela experiência que a Igreja propaga. 

Um ponto que acredito ser um dos mais elementares do cristianismo é, justamente, a forma como a igreja consegue conciliar de forma tão magnifica opostos que parecem quase não ter relação nenhuma: o eixo principal de toda uma doutrina gira em torno da conflitante, mas harmoniosa, disputa sobre disciplina e liberdade. Chesterton fala que, depois de haver lido tanto cristãos, quanto anticristãos da fé, “uma impressão lenta e terrível cresceu gradativa, mas vividamente, em minha mente: a impressão de que o cristianismo devia ser algo muitíssimo extraordinário. Pois não apenas (como eu entendi) o cristianismo tinha os vícios mais flamejantes, mas aparentemente tinha um talento místico para combinar entre si vícios que pareciam contraditórios.”

Sobre isso, o ensaísta explica sua visão de como o cristianismo foi a resposta para aqueles que acreditavam que a solução da humanidade passava por um equilíbrio das coisas, quando na verdade, o que a igreja prega é um conflito entre duas paixões aparentemente opostas. Não que não fossem compatíveis, mas eram de tal tipo que era difícil mantê-las simultaneamente, e nos mostra um exemplo sobre a virtude da coragem, olhando para um suicida e um mártir.

“A coragem é quase uma contradição em termos. Significa um forte desejo de viver tomando a forma de uma prontidão para morrer. ‘O que perder sua vida a salvará’ não é uma dose de misticismo para santos e heróis. É um conselho diário para marinheiros ou montanhistas. Pode ser impresso em um guia de alpinismo ou em um manual de instruções. Esse paradoxo é todo o princípio da coragem, mesmo da coragem bastante terrena ou bastante brutal. Um homem isolado pelo mar pode salvar a vida se arriscá-la no precipício.

Ele só pode se afastar da morte por pisar continuamente em um centímetro dela. Um soldado cercado por inimigos, se quiser escapar, precisa combinar um forte desejo de viver com uma estranha despreocupação com respeito à morte. Ele não deve simplesmente se apegar à vida, pois assim será um covarde e não escapará. Ele não deve simplesmente esperar pela morte, pois assim será um suicida e não escapará. Ele deve buscar a vida em um espírito de furiosa indiferença a ela; ele deve desejar a vida como água e ainda beber a morte como vinho.”

O escritor britânico continua: “nenhum filósofo, imagino, jamais expressou esse enigma romântico com a lucidez adequada, e eu certamente não o fiz. Mas o cristianismo fez mais: marcou os limites dele nas terríveis sepulturas do suicida e do herói, mostrando a distância entre aquele que morre por causa da vida e aquele que morre por causa da morte”. Aqui, é preciso esclarecer que antigamente, na idade média, os suicidas eram considerados inimigos de Deus, e condenados diretamente ao inferno por seu ato (ainda hoje são), e eram enterrados muito longe dos cemitérios, para realmente mostrar que não eram dignos nem mesmo de um enterro comum ao lado dos demais: era preciso separá-los, de tão “podres” que suas almas se tornavam após sua escolha. O cristão escolhe sempre a vida, mas tem essa preocupação em ser despreocupado do herói, de encarar a morte buscando sua redenção na vida eterna.

A Beleza do cristianismo, asseverada por esse aparente conflito de opostos, continua na forma como somos vistos, ou melhor, da maneira com que nos colocamos diante do mundo. “Por um lado, o Homem deveria ser mais arrogante do que jamais fora antes; de outro, ele deveria ser mais humilde do que jamais fora antes. Por eu ser Homem, sou a principal das criaturas. Por eu ser homem, sou o principal dos pecadores”. Somos imensos por ser uma espécie única no Universo, mas ao mesmo tempo somos irrisórios por sermos apenas um rastro de poeira nesse mesmo Universo. Por isso, seguindo na mesma linha do que diz Corção, de que “se a nossa vida se limitasse ao que vemos, ela seria um absurdo”, só conseguimos enxergar algum sentido sobre tudo quando olhamos para cima e percebemos que alguém quis que estivéssemos aqui. Como Chetserton escreve, se há uma história, há um escritor.

“Ao insistir especialmente na imanência de Deus, temos introspecção, autoisolamento, quietismo, indiferença social; o Tibet. Ao insistir especialmente na transcendência de Deus, temos admiração, curiosidade, aventura moral e política, justa indignação; a cristandade. Insistindo em que Deus está dentro do homem, o homem está sempre dentro de si mesmo. Ao insistir que Deus transcende o homem, o homem transcende a si mesmo”. Eis aqui a ideia de porquê o cristianismo é, contrário ao que muitos pregam, a verdadeira libertação do homem.

A quantidade de comparações significativas, e belas, que o autor apresenta numa obra até relativamente curta, é uma pequena demonstração do quão rica é a vida intelectual cristã: a falsa ideia de que ao crer em Deus, fechamos nossa mente para a inteligência, como se toda a religião fosse algo absolutamente finito, é exatamente o contrário da realidade, pois apenas o cristianismo permite que ultrapassemos os limites da nossa materialidade, ao passo que o racionalismo exacerbado, a ciência cartesiana, não consegue enxergar além do que os olhos veem. 

“Aqui devemos nos lembrar da difícil definição de cristianismo já dada: o cristianismo é um paradoxo sobre-humano em que duas paixões opostas podem fazer luzir uma à outra”(...)“Somos nós, cristãos, que aceitamos todas as evidências reais; são vocês, racionalistas, que recusam a evidência real por serem constrangidos por causa do seu credo.” 

Ortodoxia, G.K. Chesterton.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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