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09/02/2023 às 08h00min - Atualizada em 09/02/2023 às 08h00min

Dor

IVONE ASSIS
Enquanto relia a frase “Vais encontrar o mundo [...]. Coragem para a luta” (Pompéia, 1996), fiquei pensando no fatídico terremoto que assolou a Turquia e a Síria, nesta semana. Quanta dor, quanta luta, e quanta coragem se faz necessária para seguir em frente.

Um pai é fotografado pelo jornalista Adem Altan, segurando a mão de sua menina (15 anos), esmagada no terremoto, e ainda sob os escombros. A única esperança que aquele pai carrega é o de conseguir dar um enterro digno à filha. Mas até isso é duvidoso, devido ao alto número de vítimas e a pouca mão de obra disponível. O desespero vai consumindo os moradores que, aflitos, aguardam resgate na Turquia.

Escombros, nevasca, chuva fortes e muito frio, atacam aos sobreviventes, alguns soterrados, outros vigilantes, todos imersos na dor.

Enquanto aquele pai segura a mão de sua filha já sem vida, outra menina nasce, sozinha, sob os escombros. Esta é levada ainda com o cordão umbilical para uma maternidade, é acolhida e segue com sua luta. A pequena, como escreveu o romancista, foi encontrar o mundo, foi à luta, e, para isso, precisou de muita coragem.

Raul Pompéia (1996), em “O Ateneu”, afirma que “A família é o amor no lar, o estado é a segurança civil”. Que é amor, não resta dúvidas, basta contemplar aquele pai segurando à mão da filha, sem vida, e a definição se encaixa.

Sobre a parte em que “o estado é a segurança civil”, isso entra em conflito com os clamores dos depoentes, como um que, em matéria do Uol, questiona: “Onde está o Estado? Onde estão?”, enquanto se desespera com tanto sofrimento e completa: “Não tem um único funcionário, pelo amor de Deus. Já se passaram dois dias, e não vimos ninguém [...]. As crianças morreram congeladas”.

Aquela segunda-feira de 6 de fevereiro de 2023 ficará para sempre na lembrança das nações. Prédios sucumbiram, soterrando seus moradores. O inverno intenso, a fome e a sede vão abocanhando as pessoas. Uma vítima relata que na manhã anterior ouviam-se os pedidos de ajuda nos escombros, mas agora é o silêncio que impera. Tristeza, angústia e raiva são estampadas naqueles que choram por seus familiares. Outra vítima tenta, ela mesma, em vão, socorrer sua mãe e seu irmão, soterrados, porém vivos. E mais vozes vão se calando.

Como escreveu Assis, em sua obra “A ficção sob os escombros da história” (2021, p. 26-27), referente a 1945: “No entanto, como medir o desmedido? A guerra nunca acaba dentro de um combatente que sobrevive. Por mais que ele tente apagar, ou esquecer o passado, sempre haverá alguém reabrindo as feridas, invocando os fantasmas, convidando-o aos escombros”.

A literatura possibilita colocar em xeque a conduta política das nações e, muitas vezes, mostra que o descaso do governo para com o cidadão de bem sempre foi uma constante mundial. É estranho pensar a política desse modo, mas é o que se vê. 

A dor dessas famílias, cuja memória vai se fixando nos destroços daquilo que um dia fora o lugar de encontros, de confidências, de risos, de sintomas de segurança e paz, é imensurável, porque tudo o que lhe fora o retrato do melhor, um dia, onde as melhores lembranças habitavam, agora é o retrato da tragédia irremediável. Seguir adiante, nesse caso, é ressignificar o lar, a família, e todas as suas conquistas, sem que se tenha nenhum fiapo do que um dia fora esses três acontecimentos. Os álbuns de família agora são as manchetes dos jornais. A vida passa a ser um espaço para chorar a sua agonia, até que um dia se torne apenas saudade.

Se Pompéia narrou a dor sob o olhar da violência, aqui ela é narrada enquanto fatalidade... um desastre natural, mas não só. Depois do terremoto veio a impossibilidade impetrada pelo descaso, nessa hora, a violência vai se avizinhando, agindo contra o olhar vazio daquele que sofre. Se Guimarães Rosa, em 1967, nos ensinou que: “O mundo é mágico. As pessoas não morrem, elas ficam encantadas”, por certo podemos dizer que viver é real, cheia de lamentos, e as pessoas se desencantam frente a sua dor.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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