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28/01/2023 às 08h00min - Atualizada em 28/01/2023 às 08h00min

A Rebelião das Massas IV

EDMAR PAZ JUNIOR
Foto: Reprodução/Internet
No texto anterior falei que apresentaria um conceito que venho notando há algum tempo no Brasil, que gira em torno de uma certa dependência, uma espécie de validade de informações, apenas quando provém de pessoas que detém algum título, seja acadêmico ou governamental; ou seja, as pessoas só aceitam aquilo que o outro disse se esse for diplomado ou funcionário do governo. Perdeu-se a capacidade de avaliar uma determinada situação com os próprios olhos e seu próprio conhecimento (talvez porque a maioria das pessoas realmente deixou de busca-lo); a era das comodidades impingiu facilidade em tudo, inclusive no pensar. 

Todos querem soluções e pensamentos prontos. Terrível para o desenvolvimento humano.
O próprio professor Olavo diz que no Brasil acontece um fenômeno distinto, pois somos o único país (talvez não seja mais, devido o imenso avanço progressista no mundo) que ignorância se torna um argumento de autoridade. Quando informado sobre algo, o sujeito diz “mas eu nunca ouvi falar disso!”, como se o mero fato de nunca ter ouvido falar invalidasse totalmente o argumento e, indo além, como se apenas o que ele soubesse fosse verdadeiro e real. 

Nessa questão de autoridade hoje no Brasil, temos uma grande parcela da população acreditando apenas no que a TV diz – ou, no que lhe é conveniente acreditar e que corrobora com aquilo que defende –, mas nunca no que seus olhos veem. Um ponto interessante sobre a tecnicidade, é que uma pessoa, digamos, um doutor em Sociologia, apesar de não entender praticamente nada sobre economia, roga para si, em detrimento da especialidade restrita à sua área, a autoridade para falar de qualquer assunto, sobre tudo, ao mesmo tempo (parafraseando o filme indicado ao Oscar) e quando errôneo, obviamente com a escusa de não ser especialista no assunto.

O principal problema, entretanto, não se trata apenas das baboseiras que dizem, mas da quantidade de pessoas que o credibilizam e não conseguem discernir uma verdade de um sofisma – mesmo os mais baratos – ou pelo menos de uma intenção de buscar a verdade, e Gasset elenca como uma das características do homem-massa a preferência de uma vida sob a autoridade absoluta a um regime de discussão.

O filósofo tem uma peculiaridade em suas obras, quando em meio a seus pensamentos faz surgir ideias maravilhosas como lições de vida. É assim, por exemplo, em Meditações do Quixote, quando diz que “eu sou eu e minhas circunstâncias, se não salvo a elas, não salvo a mim”. Aqui, nessa obra, não é diferente e o filósofo apresenta a magnífica ideia dos náufragos.
“O que é essencialmente confuso, intricado, é a realidade vital concreta, que é sempre única”. 

Quem for capaz de se orientar nela com precisão; quem vislumbrar, sob o caos que toda situação vital apresenta, a anatomia secreta do instante, em suma, o que não se perder na vida, esse é de verdade uma cabeça clara. Observem os que vos rodeiam e verão como andam perdidos na vida; vão como sonâmbulos, com sua boa ou má sorte, sem nem suspeitar o que lhes acontece. 

Ouvirão falarem em fórmulas taxativas sobre si mesmos e sobre seu entorno, o que indicaria que possuem ideias sobre tudo isso. Mas, se analisarem essas ideias sumariamente, notarão que não refletem nem muito nem pouco a realidade a que parecem se referir, e se aprofundarem mais a análise, verão que nem sequer pretendem se ajustar a tal realidade. 
Todo o contrário: com elas, o indivíduo tenta interceptar sua própria visão do real, e de sua própria vida. Porque a vida é um verdadeiro caos onde se está perdido. O homem suspeita disso; mas tem pavor de encontrar cara a cara com essa realidade terrível, e procura ocultá-la com uma cortina fantasmagórica, onde tudo está muito claro. Não se importa que suas “ideias” não sejam verdadeiras; usa-as como trincheiras para se defender da sua vida, como roupantes para afugentar a realidade. 

O homem de cabeça clara é aquele que se liberta dessas “ideias” fantasmagóricas e olha a vida de frente, e assume que tudo é problemático nelas, e se sente perdido. Como isso é a pura verdade – a saber, que viver é se sentir perdido –, aquele que o aceita já começou a se encontrar, já começou a descobrir sua autêntica realidade, já está em terra firme. 

Instintivamente, como náufrago, buscará algo a que se agarrar, e essa busca trágica, peremptória, absolutamente veraz, porque se trata de salvar-se, o fará ordenar o caos em sua vida. Essas são as únicas ideias verdadeiras: as ideias dos náufragos. O resto é retórica, postura, farsa íntima. Aquele que não se sente verdadeiramente perdido, perde-se inexoravelmente, quer dizer, jamais se encontra, nunca encara a própria realidade.”   

Bem mais que uma obra que percebe e aponta o movimento decadente das massas, temos em mãos um bom guia de como fugir à esse destino deplorável que a humanidade caminha. Tenho a ideia de que mesmo que façamos algo em que sejamos bons, se não for aquilo para que de fato Deus nos deu um dom, não estaremos jamais em plenitude com nossa existência; é como se fôssemos zumbis vivos. 

“Não é que não se ‘deva’ fazer o que dá na telha; é que não se pode fazer mais que o que cada um ‘tem’ que fazer, ‘tem’ que ser. O que resta é se negar a fazer isso que se tem que fazer; mas isso não nos deixa em liberdade para fazer outra coisa que desejamos. Nesse ponto, possuímos somente uma liberdade negativa de arbítrio – a nolição (oposto de volição, ato de não-querer). Podemos perfeitamente desertar do nosso destino mais autêntico; mas só para nos tornarmos prisioneiros nos andares inferiores do nosso destino.”

Através de pensamentos que expressam filosofias de vida que, a meu ver, falam bem mais sobre modos de crescimento interior e intelectualidade do que conselhos práticos, Ortega y Gasset mostra, indiretamente, o que resultou tanto retrocesso e barbárie em relação às gerações passadas, principalmente na capacidade de inteligir das pessoas. Não é tanto um "faça isso e evoluiremos”, mas quase um “fizemos isso e deu errado”, e ensina que é preciso cuidar de si, para que a sociedade evolua para algo que seja digno de nossa existência, ou que pelo menos se aproxime disso.

A Rebelião das Massas, José Ortega y Gasset


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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