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26/01/2023 às 08h00min - Atualizada em 26/01/2023 às 08h00min

Feijão com arroz

IVONE ASSIS
A fome sempre foi tema de discussão e problema de combate dos governantes. Com o surgimento da industrialização, seria de se imaginar que a melhoria da força de trabalho refletisse como melhoria na erradicação da fome. Mas o que houve foi mais fome. O mundo está entrando na Quarta Revolução Industrial (Indústria 4.0) e a fome continua sendo um grave problema longe de ser resolvido.

Com a COVID-19 a insegurança alimentar e nutricional ganhou força, graças à permanente existência da fome no mundo. Milhões de dólares já foram gastos em programas políticos em torno de reuniões para avaliação e erradicação da fome, mas o que se vê é um contínuo roncar da barriga de milhões de famintos. A pobreza alimentar não se intimida diante do avanço tecnológico. A razão é simples, não há, e nunca houve, prioridade humana. Desde muito antes da escravidão do povo judeu no Egito, no tempo de Moisés, que a praga da fome é avassaladora em cima dos menos favorecidos. Morrem gerações e surgem gerações e a fome continua implacável.
Na obra “Bagaceira” (2004, p. 3), José Américo de Almeida escreve: “Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o que comer na terra de Canaã”.

O relatório mais recente da FAO mostra que a população faminta e desnutrida representa 811 milhões de pessoas no mundo; sendo 418 milhões no continente asiático; 282 milhões, no continente africano, e 9,1% na América Latina e Caribe.

Em meio às fomes aguda (desnutrição sazonal), crônica (que não alcança melhoria) e oculta (marcada pela ausência de nutrientes essenciais), como vemos no filme Garapa, em que pessoas obesas morrem por subnutrição, podemos assegurar que a fome está faminta de humanidade e responsabilidade por parte dos governantes.

Se a tecnologia viesse com uma parcela de humanidade teríamos conhecimento, saúde, segurança e oportunidade de trabalho para todos, logo, cada qual poderia garantir seu pão à mesa.

Quando olhamos para a realidade dos yanomamis, problema que se arrasta por décadas, e pensamos em quantos discursos de melhoria já foram atribuídos, sem jamais acabar com a invisibilidade daqueles irmãos brasileiros, o sentimento é indigesto.

“Fariscavam o cheiro enjoativo do melado que lhes exacerbava os estômagos jejunos. E, em vez de comerem, eram comidos pela própria fome numa autofagia erosiva” (ALMEIDA, 2004, p. 8, “Bagaceira”).

Em 2008, José Padilha lançou o documentário Garapa, sobre a fome. Em uma das cenas, uma mulher vai ao Posto de Saúde, porque sofre de desnutrição, e o médico ao lhe dar a receita do que comer, ela lhe pergunta: “Doutor, onde eu posso pegar?”, referindo-se aos alimentos receitados. Que mundo cão é esse?!

Dez anos depois (em 2016), a reportagem revisitou as três famílias que ilustram o documentário de José Padilha, e a extrema miséria era a mesma, senão pior. As crianças cresceram e a carência também. Vieram novas crianças. Alguns adultos foram engolidos pela morte espreitada pela bebida, pelo suicídio, pela fome... E a história se repete. O ponto no infinito dá voz ao silêncio alumiado pela fraca luz de lamparina que substitui a energia elétrica daquele sertão desprovido de assistência governamental e social capaz de lhe dar dignidade humana.

O problema não está nas tecnologias avançadas (AI, robótica, IoT...), mas, sim, no homem em si, o qual está mais preocupado com o marketing e o poder, do que priorizar a vida, sobretudo quando se trata da governabilidade e do mundo dos negócios. A meu ver, uma boa economia é aquela que mais que gerar renda, respeita a vida. O desperdício mundial de alimentos é cerca de um terço da produção. É hora de se repensar a aplicação da Indústria 4.0 na mesa da humanidade, para que uma cozinha 4.0 propicie um cotidiano de barriga cheia, com água tratada, energia elétrica e gás para todos, para que a eficiência da produção em larga escala, em relação à alimentação, contemple a humanidade. Afinal, em um ambiente de máquinas e homens, nem só de dados se alimenta a tecnologia, é preciso priorizar a alimentação de feijão com arroz.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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