Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90
19/01/2023 às 08h00min - Atualizada em 19/01/2023 às 08h00min

Dialética

IVONE ASSIS
A gramática nos ensina que Literatura é irrealidade e poesia é inspiração. Pensando nisso, prefiro dizer que Literatura é espelho esférico; e a poesia, criatividade. Assim como os esféricos, sejam eles convexos ou côncavos, estão em lados opostos do plano, embora sejam todos espelhos, enquanto o plano é apenas um refletor estático da imagem, os esféricos permitem alterar o campo de visão, conforme a superfície refletora e o centro da curvatura. Por isso, ao comparar os espelhos, creio que posso dizer que há aí uma dialética, em que de um lado se afirma exibir o espelho a imagem idêntica da coisa, porém, em outro campo de visão, temos o oposto disso, pois os espelhos esféricos, embora mostrem o objeto refletido, a imagem não é fidedigna, mas, sim, passível de interpretação, apesar de continuar sendo imagem.

Na Literatura ocorre o mesmo, quando esta é comparada à realidade. Se for uma literatura documental/científica, esta é o espelho plano, o mais fiel possível; mas se for literatura ficcional, aí temos o espelho esférico, que, embora carregue a verossimilhança, é uma literatura não fidedigna da realidade, portanto, passível de interpretação, apesar de continuar sendo literatura com base na realidade. Logo, é um instrumento muito útil para a reflexão do leitor, o qual poderá extrair da literatura lida a imagem que mais lhe convier, de acordo com o campo de visão disponível, ou seja, conforme a superfície refletora e o centro da curvatura de cada história contada no livro e de cada história vivida do leitor.

Ora, mas que confusão é essa? Afinal, que posso estar eu querendo com essa descabida intertextualidade da filosofia com a literatura? Para que costurar dialética na Arte? Talvez, ao observar melhor as possibilidades dialéticas, se torne mais fácil interpretar a criação do autor, seja na escrita, seja na arte. Pensando nisso, lembrei-me de Mario Quintana (1906-1994), o qual, em sua sabedoria filosófica e literária, optou por uma poética que dialogasse com o leitor, ao mesmo tempo ele narra sua gênese, exibindo a própria imagem como eixo norteador de sua criação literária.

No poema “Deixa-me seguir para o mar” (Baú de espantos, 2006), Mario Quintana diz: “Tenta esquecer-me... Ser lembrado é como / evocar-se um fantasma... Deixa-me ser / o que sou, o que sempre fui, um rio que vai fluindo... [...] / Um espelho não guarda as coisas refletidas! / E o meu destino é seguir... é seguir para o Mar, as imagens perdendo no caminho... / Deixa-me fluir, passar, cantar...”

O poeta usa a metáfora para mostrar ao leitor a sua dor espelhada na poética, e para que não reste dúvida de que, sendo a vida um movimento, toda a história refletida é passível de interpretação. Qual rio que corre, também a vida depende do campo de visão.

Posso estar devaneando em minha simplória análise, mas, acaso não dissera o próprio Quintana, “Todos esses que aí estão / Atravancando meu caminho, / Eles passarão… / Eu passarinho!”? Então, que me abrace a sensibilidade, concedendo-me a liberdade para voar.

Ainda pautada no espelho e na dialética, trago “Os alegres peregrinos” (2022), de Enivalda Nunes Freitas e Souza, uma obra ficcional, em que exemplifico aqui com o medo que assombrou as irmãs na narrativa do milharal. Aquele passar das horas, vai mobilizando o sujeito leitor e o sujeito poético de modo tal que, de repente exclamamos, “nossa, as irmãs eram a autora e sua irmã e, de fato, o Nego D’água existe”. A literatura citada reflete a vida, ora em espelho plano, ora em espelho esférico. As dicotomias desse conto se pautam, de um lado, na imagem plana, no passado/presente de alguém; do outro, como contrário/opositor, tem-se a arte literária, a imagem esférica – côncava/convexa –, em que o convexo se fecha, quem sabe, nas vivências da autora, e o côncavo se abre às possibilidades literárias, ficcionais e interpretativas, formando o vasto campo de visão, adubado com uma interpretação dialética.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
Leia Também »
Comentários »
Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90