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07/01/2023 às 08h00min - Atualizada em 07/01/2023 às 08h00min

A Rebelião das Massas

EDMAR PAZ JUNIOR
Foto: Reprodução/Internet
Já escrevi, em duas outras oportunidades, sobre textos de José Ortega y Gasset. A ideia de se falar sobre bons autores, mesmo diante da imensa quantidade deles, acaba por entrar, vez ou outra, em mais de uma obra do mesmo escritor. Geralmente, acredito, isso ocorre porque o pensador não se preocupa tanto com a aceitação dos seus leitores para que suas publicações tenham sucesso; a contrário senso, preocupa-se apenas em narrar aquilo que percebe, o seu olhar sobre o real. Consequência dessa busca pela Verdade, Ortega possui trabalhos magníficos e traços de genialidade em todas as suas obras.

Gasset é esse filósofo que aponta relações entre situações que sequer notaríamos, caso ele não o tivesse feito. Ainda, impressiona pela extensa bagagem e maturidade intelectual com que conjectura cenários de épocas e lugares distintos. Pela densidade dessa obra, pretendo digeri-la em mais de um texto, de forma que possamos, na medida do possível, percorrê-la por inteiro. É uma obra valiosíssima para os dias atuais, mesmo sendo escrita no final da década dos anos 1920, e proponho aqui um estudo sobre ela durante esses dias.

Tanto na introdução à essa edição, escrita por outro filósofo espanhol, Julián Marias, quanto no Prólogo para os franceses, escrito por Gasset, temos um vislumbre do tesouro que temos em mãos. Somado a eles, há também a primeira e segunda parte, que contém o “grosso” da teoria do autor, o Epílogo para Ingleses e outros três artigos que complementam sua ideia. O bom escritor, penso, é aquele que escreve para além do seu tempo, e sem se preocupar com algum reconhecimento, busca entender e fazer entender algo que transcenda sua existência e permaneça presente, num real Sentimento de Continuidade.

O interessante é que Gasset consegue demonstrar, mesmo que esse não seja o seu intuito na obra, quão cíclica é a humanidade. “E, de fato, não acontece nada novo que não tenha sido previsto cem anos antes. ’As massas avançam’, dizia Hegel, apocalíptico. ‘Sem um novo poder espiritual, nossa época, que é uma época revolucionária, produzirá uma catástrofe’, anunciava Augusto Comte. (...) É falso dizer que a história não é previsível. Foi profetizada inúmeras vezes.”

Alternam-se períodos – talvez uns com um espaço de tempo entre si maiores que os demais – entre progressos e involuções, pois nem sempre o progresso é uma via de mão única, em que só existe aprimoramento e melhoras. Por vezes, a humanidade deu mais passos para trás do que propriamente para frente. Ortega diz: “Não há razão para negar a realidade do progresso; mas é preciso corrigir a noção de que esse progresso seja seguro. É mais congruente com os fatos pensar que não há nenhum progresso seguro, nenhuma evolução sem a ameaça de involução e retrocesso. Tudo, tudo é possível na história – tanto o progresso triunfal e indefinido quanto a regressão periódica. Porque a vida, individual e coletiva, pessoal ou histórica, é a única entidade do universo cuja substância é o perigo. Compõe-se de peripécias. É, rigorosamente falando, drama.”

Muitas “modas” que acontecem ou que surgem no velho continente, tem a tendência de se expandir para os demais; e com a América não é diferente. É o que observamos nesse caso com o Brasil. Na Introdução de Marias, ele observou um fenômeno, dizendo que o que Ortega havia notado de forma “superficial”, se intensificou tão logo o livro foi publicado. “O livro nasceu em uma (geração), mas viveu desde o berço em outra, bem distinta: em uma época de politização. Ou seja, um tempo em que tudo – o que é político e o que não é – é tomado politicamente e como se fosse político, em que tudo se reduz a essa ‘única questão’, de averiguar se algo ou alguém é de direita ou de esquerda.”

No seu Prólogo, Ortega reafirma, premeditadamente o que Marias escreveu 40 anos depois, e o que vemos claramente nos dias atuais: “(...) e o assunto do qual ele (livro) trata é demasiado humano para que o tempo não o afete demasiadamente. Há, sobretudo, épocas em que a realidade humana, sempre móvel, se acelera, se embala em velocidades vertiginosas. Nossa época é desse tipo, porque é de descidas e quedas.”

É importante um aviso sobre a apoliticidade, tanto do autor quanto de sua obra, deixando claro o que Marias bem observou, e que muitos ainda insistem em dicotomizar nos dias de hoje: nada, ou tudo, não se resume à política. “Nem este livro nem eu somos políticos. O assunto tratado aqui é prévio à política e pertence ao seu subsolo. Meu trabalho é o obscuro labor subterrâneo do mineiro. A missão do chamado ‘intelectual’ é, em certo sentido, oposta à do político. A obra intelectual visa, muitas vezes em vão, esclarecer um pouco as coisas, ao passo que a do político normalmente consiste, ao contrário, em confundi-las mais do que já estavam. Ser de esquerda, como ser de direita, é uma das infinitas maneiras que o homem pode eleger para ser um imbecil: ambas são, de fato, formas de hemiplegia moral. Ademais, a persistência desses qualificativos contribui muito para falsificar ainda mais a ‘realidade’ do presente, que já é falsa por si, porque as experiências políticas correspondentes se complicaram ao extremo, como demonstra o fato de que hoje as direitas prometem revoluções e as esquerdas propõem tiranias.”

Na primeira parte, Ortega busca uma explicação não apenas para o aumento exponencial da quantidade de pessoas, mas para como o aumento não “preparado” é um risco para o desenvolvimento regular da humanidade, e quando apresenta o conceito de massa, começamos a entender, de certa forma na raiz do problema, como a linguagem é elementar no curso que a sociedade toma. “O conceito de multidão é quantitativo e visual. (...) A sociedade é sempre uma unidade dinâmica de dois fatores: minorias e massas. As minorias são indivíduos ou grupos de indivíduos especialmente qualificados. A massa é o conjunto de pessoas que não são especialmente qualificadas. Portanto, não se entenda por massas, nem apenas nem principalmente, ‘as massas operárias’. Massa é o ‘homem médio’. (...) Diante de uma só pessoa podemos saber se é massa ou não. Massa é todo aquele que não se dá valor – bom ou mau – por motivos especiais, que se sente ‘como todo mundo’, e no entanto não se angustia, e gosta de se sentir idêntico aos demais.”

As pessoas se acostumaram a ser como todo mundo e não buscam um sentido para suas vidas, e como escreveu Lewis, depois de produzirmos homens sem peito, queremos que surjam novos heróis para salvar a história. 

A Rebelião das Massas, José Ortega y Gasset.



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

 
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