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29/12/2022 às 08h00min - Atualizada em 29/12/2022 às 08h00min

Correr atrás do vento

IVONE ASSIS
Quando encerramos o ano, geralmente, damos uma faxina nos armários, nos papéis, no computador... É impressionante como acumulamos coisas. E isso é do ser humano, mas devemos nos esforçar em desapegar dos acúmulos medíocres e valorizar os importantes: a família, a amizade e os valores. Como é imprescindível o ato de primar pelo importante.

O livro de Eclesiastes 2 ensina sobre a vida e suas perspectivas, no que se refere a descobrir o sentido e o contentamento, sem jamais perder a fé e a esperança, para que a realização humana seja plena. Ou seja, devemos nos apegar ao fundamental e ignorar a futilidade, devemos fugir de sermos injustos, devemos nos esforçar em ignorar a própria natureza, em prol do respeito e da boa convivência. Também devemos cuidar da autorrealização em detrimento do viver bem, mas coerentemente.

O livro citado nos ensina que, bom é que se trabalhe intensamente, sempre desfrutando da vida, ainda que haja tribulações e incertezas. Isso é ter fé. Então, o autor, o qual muitos alegam ser Salomão, diz: “Ajuntei para mim prata e ouro, tesouros de reis e de províncias”, consequentemente, ele se tornou “mais famoso e poderoso do que todos os que viveram em Jerusalém antes” dele. Mas em tudo ele manteve consigo sua sabedoria, como ele próprio diz, “eu me alegrei em todo o meu trabalho”. Mas, ao final de tudo, ele percebeu que todas aquelas conquistas, se não tiver um sentido maior, não passam de ser “correr atrás do vento”. O sentido maior está nos valores e não nas coisas. Por exemplo, um carro não pode valer mais que a alegria da família em usufruir de tal objeto; viajar é menos importante que a felicidade em estar juntos. E assim se segue.

Ainda em Eclesiastes 2, diz: “Para o homem não existe nada melhor do que comer, beber e encontrar prazer em seu trabalho”. Todos labutam por isso, ainda que seja por diferentes meios. E quem é o maior beneficiado desse processo senão o próprio sujeito? Ora, a recompensa pelo esforço em primar pelo importante vem por meio de “sabedoria, conhecimento e felicidade”. Afinal, estes são os bens que todos buscam alcançar. Pois o acúmulo de riquezas não passa de ser “correr atrás do vento”.

Anotei essa frase “correr atrás do vento” em minha agenda, para não a esquecer. Como escreveu Clarice Lispector (2007a, p. 50), sobre o diário, “Acho que vou copiar nele as poesias que me agradam, os pedaços de livros que me agradam. E assim, aonde eu for, terei uma biblioteca escolhida”. Igualmente, vou anotando textos que me agradam e me edificam, para que, em tempo oportuno, eu os aplique em meu contexto.

O fato é que a escrita e o escritor vão se entrelaçando em uma urdidura de palavras e memórias, formando aquilo que chamamos de texto. Depois, esse mesmo texto ganha autonomia e segue desbravando em novas experiências, em que o leitor vai incrustando nele sua dialética, bem como sua própria memória, em uma metodologia de compartilhamento consigo e com o outro. É quase um enigma, mas prefiro chamar de interpretação.

Clarice, em 7 de setembro de 1968, em sua crônica “Os perfumes da terra”, escreveu: “Já falei do perfume de jasmim? Já falei do cheiro do mar? A terra é perfumada. E eu me perfumo para intensificar o que sou. Por isso não posso usar perfumes que me contrariem. Perfumar-se é uma sabedoria instintiva. E como toda arte, exige algum conhecimento de si”.

Quão profundo e belo é esse texto de Lispector. De certo modo, olhando com o olhar literário, o cerne da fala da autora se conecta ao texto de Eclesiastes 2, em que a palavra vai convidando o leitor a observar o que está além do óbvio. Convida o leitor a enxergar o invisível, o intangível, a essência. Ambos os textos se voltam para a valorização do que é importante, o eu sem máscaras, para que não venha a “correr atrás do vento”.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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