Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90
22/12/2022 às 08h00min - Atualizada em 22/12/2022 às 08h00min

Despedidas

IVONE ASSIS
Lendo o poema “Conheço a residência da dor”, de Cecília Meireles, lembrei-me de que no dia 23 de dezembro é comemorado o Dia do Vizinho. Para mim, uma data muito importante, que enaltece aquele sujeito bom que se emparelha ao estranho e, a seu jeito, vai conquistando até se tornar um amigo raro, um “membro da família”.
 
Nos últimos anos, a minha rua foi violentada pela dor da perda de muitos vizinhos. Mas ao olhar as casas, é como se ainda estivessem lá. A arquitetura parece ter incrustado a memória deles nas paredes, nos jardins, nos portões.
 
Na casa ao lado, ainda posso ouvir a voz rouca e firme daquela vizinha, incrivelmente maravilhosa, que, dotada de amor pleno, sempre encontrava um tempo disponível para fazer um prato especial e promover uma surpresa. Temperava tudo com afeto e do forno exalava o cheiro de carinho misturado com pão de queijo. O cafezinho quente e a boa prosa convidavam a outra vizinha a se juntar ao grupo. Posso dizer, sem exagero, que poucas vezes vi tanta união entre vizinhos como aquelas duas.
 
Na obra “O palhaço e o psicanalista: como escutar os outros pode transformar vidas”, Christian Dunker e Cláudio Thebas nos ensina que: “Além de jogar e representar, a arte da escuta exige as qualidades que se espera de um bom viajante. Há pessoas que viajam com um roteiro fixo em que qualquer contratempo é sentido como uma ameaça. Há outras que tiram tantas fotografias para lembrar-se depois, que conseguem se evadir do agora e não vivem o que define a essência da viagem, que é a arte do encontro contingente. Viajar é redescobrir-se outro, naquele país novo e diferente, e que nos tornará outros quando voltarmos para nosso lugar. Ora, entrar em contato com o desconhecido sem se sentir ameaçado por ele é o que esperamos de alguém disposto a nos ouvir e se surpreender com o que dizemos, como se fosse uma viagem feita com palavras” (2016, p. 46).
 
Não é de hoje que a ciência tenta desvendar o funcionamento do cérebro humano, para dominar o comportamento, mas, o sistema nervoso, líder do comportamento, dos pensamentos e dos sentimentos, se nega ao desvendar do mistério. Desse modo, podemos dizer que, apesar de todas as hipóteses, o comportamento humano continua soberano, pois o seu desvendar tornaria tudo pequeno demais, finito e insignificante. É a grandeza inexplicável que move a ciência, a criação e a arte. As neurociências vêm cavoucando neste setor, mas segura de que não há ponto final.
 
Cecília Meireles, poetisa singular e de grandeza maior, escreve: “Conheço a residência da dor. / É um lugar afastado, / Sem vizinhos, sem conversa, quase sem lágrimas, / Com umas imensas vigílias, diante do céu”. De fato, onde falta o vizinho habita a solidão. Parece que ainda ouço o latido do cachorro, o barulho do portão, e o chamado, de vez em quando, para a troca do gás, ou para a entrega de um prato cheio de algo saboroso. Como dói essa saudade. Como escreveu Cecília Meireles, “A dor não tem nome, / Não se chama, não atende. / Ela mesma é solidão: / nada mostra, nada pede, não precisa. / Vem quando quer”. E quando os bons vizinhos deixam de existir, fica um vazio em seu lugar. Mesmo que não se encontre todos os dias, só fato de pensar que o vizinho está por ali já é o suficiente. O bom vizinho tem a ciência de ouvir o outro.
 
Entre as possibilidades, influências e evidências encontra-se também a minha limitação, assim sendo, o máximo que posso assegurar sobre o processo de compreensão, organização e funcionamento da mente humana é a correlação entre ação e reação, em uma contínua metodologia de adaptação de estímulos, amparados por comportamentos advindos da aprendizagem e da memória, ou seja, aqueles gestos comportamentais da vizinhança produziam vida, e agora produzem saudade. Enquanto escrevo esta coluna, a chuva que cai lá fora também chove em meus olhos, porque tudo o que restou da vizinhança citada foi o silêncio da ausência. O vovô sempre me dizia, o preço de se viver muito é ter de assistir as despedidas.



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.



 
Leia Também »
Comentários »
Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90