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06/12/2022 às 08h00min - Atualizada em 06/12/2022 às 08h00min

Amor de Milton

ENZO BANZO
Foto: REPRODUÇÃO/FACEBOOK
Depois de secar o rio de lágrimas que correu enquanto acompanhava pela TV “A última sessão de música”, despedida dos palcos de Milton Nascimento, fiquei dias sentindo as reverberações emotivas daquele ritual. O sentir me levou a pensar sobre o conjunto do repertório selecionado, e percebi na voz mística de Bituca a evocação de um modo próprio de amar: o amor de Milton.
 
É diferente daquilo que costuma vigorar no mundo das canções. Quando falamos em músicas de amor, logo associamos o termo àquelas em que o “eu” da canção sofre pela ausência do ser amado – e não estou falando só da sofrência dita brega (que eu adoro), mas de todo um repertório cantado por artistas como Chico Buarque, Maria Bethânia, Gonzaguinha, com antecedentes no samba-canção das grandes vozes que ditaram a tendência dos anos 1940 e 1950.
 
Essa manifestação do amor passional não é a tônica de Milton, embora seu primeiro sucesso, “Travessia”, se abra com versos que podem ser incluídos nesse território em que o “eu” sofre pelo “você”, a quem se dirige: “quando você foi embora / fez-se noite em meu viver / forte eu sou, mas não tem jeito / hoje eu tenho que chorar”. Nas canções passionais é comum que, no refrão, a melodia salte para notas mais agudas e longas, como nos revela a teoria entoativa de Luiz Tatit. No plano melódico do refrão de “Travessia” não é diferente: a melodia sobe, as notas se alongam; mas a letra nos apresenta a voz de Milton em uma autoafirmação pelo cantar: “Solto a voz nas estradas / já não quero parar”. Se a conclusão do refrão se resolve em alta carga dramática – “vou querer me matar” –, a volta da estrofe aponta o abrir-se para um novo caminho: “Vou seguindo pela vida / me esquecendo de você / Eu não quero mais a morte / Tenho muito que viver”.
 
Parecia um sinal, captado pelo letrista-poeta Fernando Brant, do que seria a travessia de Milton a partir daí. Soltar a voz, cantar a vida, celebrar um amor menos das paixões em crise, e mais da conjunção: amor da amizade (“philia”), amor pela natureza e por todos os seres (“ágape”). Nesse sentido, Milton é o porta voz maior de uma certa filosofia do Clube da Esquina, verbalizada nos versos de seus parceiros (Fernando Brant, Márcio Borges, Ronaldo Bastos) a partir do movimento transcendente evocado em suas criações musicais e na matéria sublime de sua própria voz.
 
É esse amor que Milton parece chamar ao longo da vida, mesmo quando não é um dos compositores, como em “Amor de índio”, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos: perpassando a relação amorosa (“tudo, viver a teu lado”), celebra-se um amor de maior alcance, irrestrito ao universo do par romântico: “tudo que move é sagrado, todo amor é sagrado”. A canção parece dizer, em outras palavras, o que se exalta no refrão de “Paula e Bebeto”, na qual o incumbido de traduzir o amor de Milton para os versos foi Caetano Veloso: “qualquer maneira de amor vale a pena”.
 
O amor de Milton nos abre ao encontro do nosso próprio amor, represado pela vida cotidiana: “todos os dias é vai um vem / a vida se repete na estação”. E assim nos derramamos ao ouvi-lo cantar “Canção da América” (“amigo é coisa pra se guardar...”), “Coração de Estudante” (“e há que se cuidar do broto / pra que a vida nos dê flor / e frutos”), “Maria, Maria” (“uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta”), “Clube da Esquina nº2” (“e sonhos não envelhecem”). O amor de Milton nos comove até quando não canta, seja pela força de sua presença, seja por seus gestos, como ao dedicar seu último show à amiga recém-partida, Gal Costa.
 
No trem em que chegou, Milton anunciava como profecia a sua sina: ganhar mundo soltando a voz. No mesmo trem em que parte, o generoso Milton nos leva a todos, nos faz mais humanos e sensíveis, revela em nós o próprio amor, conectando-nos a algo maior com sua voz de mensageiro. Eu não sei se existe Deus... mas Milton não me deixa duvidar.



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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