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01/12/2022 às 08h00min - Atualizada em 01/12/2022 às 08h00min

“Mais de mil palhaços no salão”

IVONE ASSIS
Relendo a obra “Memórias: entre a prosa e a poesia”, que organizei há alguns anos, deparei-me com o texto “Saudades dos carnavais de minha vida”, de Fátima Leonor Sopran, moradora de Luís Eduardo Magalhães (BA) e doutora em Estudos Literários pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real. Talvez por sua vivência com a Crítica, a História, a Cultura e a Sociedade, a escritora tenha conseguido trazer essa leitura memorialística, com sua estética e ludicidade, de forma tão brilhante. Sua literatura vem reacendendo um recorte de tempo, que encantou o brasileiro da época e continua a seduzir.

A música citada é o samba enredo “Máscara negra”, fruto de tantas polêmicas e tantas alegrias. Uma composição de Zé Keti, gravada por Hidelbrando Pereira Matos, cuja autoria foi reivindicada pela viúva de Deusdedith Pereira Matos, irmão do co-autor, a qual garante pertencer o crédito ao seu falecido, o qual se despediu dessa ala carnavalesca em julho de 1966. Intriga confirmada pelo cantor Ary Cordovil. Mas nesta vida não se reinventa a roda. Não demorou muito e vieram novos conflitos atribuindo as verossimilhanças encontradas entre a marchinha brasileira e outras polêmicas. Burburinhos são comuns quando se envolvem muitas demandas. Zé Keti não se deteve nesse engodo, seguiu em frente.

De lá para cá, milhares de pessoas, rádios, literaturas... vieram reacendendo a faísca dessa marchinha que se despontou na memória do povo, que se divertiu e fez sua própria história sob as notas musicais desta criação. Ela foi um sucesso apresentado por Dalva de Oliveira, em 1967, e amplamente retomada por carnavalescos ao longo da história, inclusive em 2016, pela Beija-Flor.

Em seu texto, Leonor traz à memória o auge dos dezessete anos e o bloco Caldeirão. A personagem da cronista remonta a saudade do primeiro baile, e à guisa do Arlequim chorando por sua Colombina, em meio à multidão. A narrativa imbrica saudade e história de uma jovem que descobre seu amor em um “rapaz de um bloco vizinho”, o qual a “convida para dançar”, em um encontro inesquecível. Outros carnavais vieram e sempre um novo devaneio, uma nova felicidade. Mas foi o carnaval de 1995 que lhe trouxe um grande amor. “Foi no baile de Ano Novo, tive uma entrada triunfal, caí justamente quando estava entrando no salão. O chão estava um brilho e resvalei com meu salto alto, fui acolhida por um moço grisalho, com um belo sorriso no rosto. [...] foram muitos beijos” (2013, p. 64). “Os beijos foram trocados como se fossem os últimos, com uma sede incrível, parecia um grande conforto tanto para mim como para ele. E foi assim que se iniciou uma grande paixão esfacelada pelo tempo” (2013, p. 65). “Os sentimentos são fugidios e nos pregam grandes surpresas” (2013, p. 65).

A história de Carnaval, no Brasil, já veio polêmica. Trazida pelos portugueses, o que não poderia ser diferente, haja vista eram os colonizadores, a festa veio como desforra compensatória pelo período da Quaresma. Como a história é viva e está em constante movimento, tudo foi se remodelando. A brincadeira com os baldes d’água sofreram retaliação pela crise hídrica, os salões de carnaval foram boicotados pelas passarelas, o jejum da Semana Santa se aliou à crise financeira, o tríduo foi preenchido por bebedeiras e desavenças provocadas pelas mentes confusas pelo efeito de entorpecentes, que deixaram de ser simples lança-perfumes, para dar lugar a problemas maiores. Contudo, jejum forçado não alcança a realeza, assim sendo, de tanta dieta e cirurgia bariátrica, o Rei-Momo está magrinho. Na década de 1980, Ary do Cavaco e Bebeto Di São João, em “Reunião de Bacana”, lançaram o grito carnavalesco “Se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão...”, isso não intimidou os mamulengos, que se mantém altivos. No abre-alas, entre festejos, sistemas e linguagens, mais e mais o Imperador dita as regras do enredo, na construção do manto civilizatório, aos “Mais de mil palhaços no salão”.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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