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24/11/2022 às 08h00min - Atualizada em 24/11/2022 às 08h00min

Identidade

IVONE ASSIS
Desde que o homem surgiu na Terra que a desigualdade reverbera sobre as pessoas. Ao ler a obra “Nas fronteiras da ‘terra prometida’: trajetórias de trabalhadores rurais do Alto Acre”, da pesquisadora Kelen Gleysse Maia Andrade (2021), segui descobrindo o “meu próximo” acreano, tão desconhecido por mim. De início, fui apresentada à ignota palavrinha “brasivianos”, nome dado aos apátridas (trabalhadores, seringueiros... homens, mulheres) que povoam a zona fronteiriça Brasil (Acre)/Bolívia. Mas, por que apátridas? Porque o Brasil não os quer e a Bolívia não os aceita de volta. As crianças são extensões de seus pais, por isso herdam o mesmo legado, já nascem na condição de desterrados.

O processo de construção e historicidade dessa gente que trabalha e que sonha com um quinhão de terra vem se arrastando ao longo dos anos, entremeando o curto espaço de tempo ocupado pelo sujeito nessa arte a que denominamos vida.

Creio que Kelen Andrade foi muito feliz com a inclusão da expressão ‘terra prometida’ no título de sua obra, porque remonta a “criação”, os primórdios e a desigualdade que perdura por toda a vida. Para nós, que somos do Sudeste, por mais que imaginemos essa vivência do Norte, mais especificamente do Acre, ainda é pouco para compreender o vazio que povoa essa gente “brasiviana”, em que o pertencimento está sempre do outro lado.

O Acre, esse cantinho de Brasil, alinhavado pelas fronteiras estrangeiras do Peru e da Bolívia, e pelas fronteiras nacionais Amazônia e Rondônia, muito tem a nos ensinar sobre essa “metáfora” a que chamamos intercâmbio cultural e pertencimento. Como pesquisadora em segunda guerra, não poderia mencionar o Acre sem reviver a história, em especial, o Tratado de Ayacucho (Amizade) (1867) e a Guerra da borracha, já no século XIX. No Tratado, houve uma doação de estado, que, mais tarde, em um processo de “dá e toma” se concretizaria a Guerra da borracha, processo este que foi, em boa parte, a manutenção da II Guerra. Isso nos faz reconfigurar o pertencimento. Mas essa é outra conversa, agora o que está em pauta é o povo “brasiviano”, tão desassistido pelo Estado, e tão envolto no véu dos séculos anteriores, cujo impasse social não se dissolve.

Ao ler a obra de Kelen Andrade, o leitor vai se deparando com os próprios conflitos vividos pela autora, em um descortinar de saberes e conceitos, em que o sólido, de repente, vai se convertendo em líquido, diante da compreensão dos fatos. A autora segue mostrando ao leitor um desconhecido conceito de “igualdade” e de “reconhecimento” cultural, em que se cria uma “nacionalidade” por nome “brasivianos”, então, em meio a esse povo, o dicionário troca trabalhadores por “biscateiros”, trabalho por “bicos” ou “biscates”, e assim se segue na invenção de uma nova/velha história. Trata-se de imposições da língua, em uma invenção do olhar alheio, porém não acatada pelo sujeito a quem são atribuídas tais terminologias.

Dos pontos comuns, Kelen Andrade (2021, p. 43) afirma que, em se tratando da cultura desse povo fronteiriço, são similares em “como identificam-se tanto na linguagem verbal quanto na linguagem dos gestos, do olhar, do sorriso, do silêncio, como falam, vestem-se, trabalham e sobrevivem na floresta e na cidade”. Kelen Andrade (2021, p. 28) não deixa dúvidas sobre sua proposta para com os povos brasileiros e bolivianos da zona fronteiriça: “Assim, ao invés de engessá-lo numa identidade, tento fazer com que seja possível compreendê-lo em sua pluralidade, contextualizando-o entre a floresta e a cidade”.

Quando, de um lado, observo a Era Metaverso, que vem sendo inserida na história, nesse processo de criação de uma interface entre homem e máquina, no ambiente virtual; quando vejo a criptomoeda, a assinatura criptografada, os drones, a biometria facial, a tecnologia de nuvens... e tantos outros; e do outro lado vejo o meu semelhante ainda se digladiando pelo direito de pertencimento, é aí que me dou conta da estranheza humana. Afinal, o que é a identidade?


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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