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10/11/2022 às 08h00min - Atualizada em 10/11/2022 às 08h00min

Homem em sociedade

IVONE ASSIS
Recentemente nasceu o livro infanto-juvenil “O saci diferentão”, de Evandro Valentim de Melo. “O saci diferentão” (Tagore, 2022), de Evandro Valentim de Melo, foi ilustrado por Beatriz Mota, cuja narrativa imagética é bem lúdica e rica. Além de uma leitura muito interessante, o livro apresenta inquietações do cotidiano que não podem ser ignoradas, tais como o preconceito, o abandono, os maus tratos com os animais, a imprudência humana... e são ressaltados valores como amor, adoção, amizade sincera, zelo para com o próximo, felicidade...

O livro traz ainda “curiosidades de mercado”, como a abordagem comparativa do folclore brasileiro com o dia das bruxas americano. À página quatro lemos: “Do interior da floresta, logo no primeiro minuto do dia 31 de outubro, iniciaram-se os estalidos”, aqui o autor está a narrar o nascimento de um ser diferente. “O fenômeno ocorre apenas uma vez ao ano, sempre na mesma data”. Dos gomos de bambus saem os sacis, fazendo daquele bambuzal uma maternidade em meio à floresta.

Como Lobato escreveu em “Ideias de Jeca Tatu” (p. 33), apoiado em seu espírito crítico de arte, em um contexto de provocação e inquietação estética: “[...] para animar os gramados do Jardim da Luz, importamos nibelungos alemães, sacis do Reno!... Temos ninfas, ou o correspondente disso, puramente nossas; a Iara, a Mãe-d’Água, a Mãe do Ouro. Temos Marabá, a perturbadora criação indígena – mulher loura de olhos azuis, filha de estrangeiro e mãe aborígine [...]. Temos caiporas, boitatás e tantos outros monstros cujas formas ainda em estado cósmico nenhum artista procurou fixar. Se há nas matas uma riqueza inaudita de motivos vegetais suscetíveis de estilização, por que deter-nos toda a vida no arquissurrado acanto?”

Saci é figura conhecida do folclore brasileiro, são “arredios negrinhos pernetas”, que se espalham por todos os lados, fazendo proezas. Mas, certo dia, eis que surge um fenômeno fora da curva, nascia um saci diferentão.

Desbotado, como sugere o nome, veio albino, branco de doer, e moroso. Um sujeito muito diferente dos habituais. Chegou com medo do novo mundo, agarrou-se ao seu gominho de bambu, mas já não podia retornar ao ventre do qual saíra. Lançado ao mundo, era preciso enfrentar seus fantasmas. Desbotado teve seu primeiro duelo com os raios solares, e perdeu feio a batalha. Voltou correndo para a sombra. Com a pele em chamas, sentado em uma pedra, encontrada “no meio do caminho”, conheceu Tito, o jabuti. Era o seu primeiro amigo, e fora Tito quem o nomeara de Desbotado, após perguntar seu nome e receber como resposta “Saci”. Ao que o jabuti lhe respondeu: “Saci não é nome, é espécie”. Mais algumas palavras e perpetuou o silêncio entre dois. Tito, analisando sua aparência, lhe sugeriu um nome, que foi aceito, prontamente. “Então, com a autoridade dos meus muitos anos de vida, eu lhe batizo: Desbotado”. E assim aconteceu.

Tito era muito sábio, então fez uma mistureba de plantas e instruiu a Desbotado que misturasse tudo muito bem e se besuntasse com aquele emplastro. Desbotado obedeceu e sua pela ganhou proteção contra os raios ultravioletas, podendo caminhar livremente pela floresta, sob o Sol ou a sombra, tanto faz.

Durante suas caminhadas, Desbotado fez novos amigos e, com a bisbilhotice de qualquer criança na sua fase, ele quis conhecer a cidade. E assim o fez. Lá descobriu que haveria uma emboscada para os animais da floresta, querendo avisar aos amigos, encontrou seus irmãos, que, desconfiados, aplicou-lhe algumas provas. E vendo a sinceridade do irmão, os sacis pretos adotaram, com muito amor (ou melhor, como muita ‘estripulia’), o saci branco.

Unidos, os animais se salvaram todos. E os sacis, com a ajuda da amiga onça, deram uma lição naqueles caçadores de confusão. Desse modo, posso afirmar que a essência de “O saci diferentão” está na ludicidade, no encantamento do folclore brasileiro, nos valores humanos, nas figuras reflexivas que representam o homem em sociedade.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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