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01/11/2022 às 08h00min - Atualizada em 01/11/2022 às 08h00min

Vou mostrando como sou

ENZO BANZO
Vou mostrando como sou e vou sendo como posso.

Assim começa “Mistério do Planeta”, canção dos Novos Baianos lançada no clássico álbum Acabou Chorare, de 1972.  Nos últimos dias, nos deixou o autor dos versos, o poeta Luiz Galvão, aos 87 anos. Não só desses, mas da maior parte da lírica do grupo.

Desde que ouvi essa faixa pela primeira vez, o que ela canta se tornou uma espécie de lema: “vou mostrando como sou / e vou sendo como posso / jogando meu corpo no mundo”. Mostrar como se é, ser como se pode ser, lançar-se no mundo. Parece simples, mas carece de coragem. Sábios, os versos de Galvão reverberam na minha mente o conhecido trecho de João Guimarães Rosa escrito-falado na voz da personagem Riobaldo, em “Grande Sertão: Veredas”: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. Entre os sertões de Minas e o da Bahia, vejo a cena, choro e rio. O sertão é um só. O sertão é o mundo.

Não me canso de ouvir a canção, gravada na voz de Paulinho Boca de Cantor acompanhada pelo violão de Moraes Moreira. O jeito da dupla Moraes e Galvão combinar letra e melodia é solto e livre como esse princípio de vida. Pode partir de uma redondilha maior, forma mais popular da nossa poética, como nos dois primeiros versos citados na abertura, ambos com sete sílabas poéticas: vou-mos-tran-do-co-mo-sou. 

Mas, de repente, podem se desdobrar em versos enormes, sem pausa, como se quem fala-canta fosse se imbuindo cada vez mais da intensidade daquilo que canta e diz, a ponto de quase não parar: “eu deixo e recebo um tanto e passo aos olhos nus ou vestidos de lunetas”. Ouça lá, o verso cantado de um só fôlego, as notas passeando soltas do meio, para baixo e para cima. A sensação que dá é que a extensão longa do verso incorpora o muito que é o tanto que se deixa e se recebe ao se passar pela vida. O passeio das notas é o ir e vir da caminhada-passeio.

Galvão e Moraes passaram pela vida recebendo-a como milagre: “passado, presente, participo sendo o mistério do planeta”. O que deixaram para a vida, para a gente, é o gesto de quem busca o mistério e nos regala com um legado que torna maior a nossa própria experiência de viver, diante e dentro da arte e do mundo. Sentimos melhor, pensamos melhor, dançamos melhor, somos melhores. 

Luiz Galvão se foi, discreto, como costumam ser os poetas que não pegam o microfone e não tomam o centro do palco, mesmo sendo autor de versos muito conhecidos. Seus últimos dias foram marcados por campanhas dos familiares e amigos nas redes sociais, para custear seu tratamento de saúde. Coisa de um país que vinha tratando muito mal os seus artistas. A nossa resposta a isso, acredito, deve caminhar para a luminosidade do cancioneiro de Luiz Galvão, que, mesmo no período de trevas da ditadura, encheu o Brasil-Pandeiro de sol: “abre a porta e a janela / e vem ver o sol nascer”.

Acabou chorare? Não acabou, porque os versos de Galvão seguem atuais, cheios de vida e de mistério: “Eu sou um pássaro que vivo avoando / vivo avoando sem nunca mais parar”. Assim é a poética de Luiz Galvão, não para de voar, insiste no desejo e na potência: “E se você fecha o olho a menina ainda dança / Dentro da menina / Ainda dança / Até o sol raiar / Até o sol raiar / Até dentro de você nascer / Nascer o que há”.
Luiz Galvão partiu, mas o poder de seus versos, diante do presente e do futuro que hoje se projetam, nos fortalece para que possamos renascer, em busca do que temos de melhor, para deixar e receber. Sendo como a gente pode.

Vou mostrando como sou.

 
*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

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