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27/10/2022 às 08h00min - Atualizada em 27/10/2022 às 08h00min

Contadores de histórias

IVONE ASSIS
A vida é feita de histórias, e quem não gosta de uma boa história? Aprendi a dividir meu tempo em prioridades, e uma delas é levar alegria ao meu semelhante. Um dos meios de transporte dessa alegria é a Contação de Histórias. Desde pequena, sempre me encantei com a contação de histórias. Lembro-me de ouvir histórias sentada no rabo do fogão à lenha, quando eu nem sabia ainda o que era cidade. Os pés de mandioca e os pés de laranja eram dois outros confidentes, que cediam suas sombras para que pudéssemos morrer de rir com as histórias. Mas não só. Havia a lamparina que, em ato de solidariedade, esperava nosso sono chegar, enquanto ouvíamos histórias de arrancar o fôlego sobre o “homem do saco”, o “caçador de onças”, o “valente vira-latas” e assim se segue. Já morando em Goiânia, nossa escola era pertinho de casa, em um bairro que trazia a América para dentro dele. Ríamos dos meninos que temiam os besouros e tirávamos vantagem nisso. Depois, contávamos grandes histórias em que nós mesmos éramos os heróis. Ah, crianças, ninguém pode com essa espécie! São boas demais para caberem em um conceito. Toda a minha trajetória de aprendizagem foi rodeada de boas histórias, estivessem elas nos livros, nas conversas ou só no imaginário. Já na faculdade, passei a fazer personagens, clássicos da literatura. Com o tempo, fui deixando os personagens de lado e fui me transformando em um deles.

Nesta semana foi a vez de levarmos alegria ao Sesi/Senac. A questão é que parece que chegamos a uma fase em que mais recebemos alegria do que levamos. Cada brincadeira tem um sentido maior. Como escreveu Orides Fontela (1940-1998), em seu poema ludismo, “Quebrar o brinquedo ainda é mais brincar”. Ora, a poesia é enigma, e banhando de suas incertezas, Fontela vai expondo seu conceito indefinido incrustado na palavra, enquanto vai desarticulando a construção da palavra ao mesmo tempo em que ressignifica a linguagem, dando “Ludismo” ao conceito, que se converte em poesia.

Enquanto fico a imaginar os artifícios utilizados por Fontela, para dar nova roupagem ao seu conceito de mundo, nesse jogo de linguagem em que a palavra que desconstrói é a mesma que edifica, fico também a imaginar a história contada, em que a palavra sai com uma intensão da boca do contador e chega com significado próprio no ouvido do espectador. A palavra, envolta em seus segredos, dispensa intérprete. Ela se entrega de “corpo e alma” ao ouvinte, enquanto vai se aninhando às vivências de cada um, e vai se moldando e se tornando necessária àquele contexto. É como se fosse um jogo de infinitos, no qual a palavra se deixa desconstruir, estraçalhando-se para que seus pingos se multipliquem, e se ressignifiquem potencialmente em cada novo argumento apresentado pelo público receptor. Desse modo, tomo emprestado o conceito de Descartes – aplicado ao sujeito –, para, em analogia, dizer que o sujeito cria uma palavra cartesiana, a qual se torna inteligível, capaz de agir por si. Com isso, a palavra proferida se torna autônoma, e segue revelando novos mundos, ilustrados por si, dentro da realidade de cada um.

Agora, análoga ao conceito de Fontela e do filósofo, digo que, na Contação, a metamorfose da linguagem é mais história ainda. A palavra é autossuficiente, ela cria sua própria poética. Isso nos lembra Octavio Paz, o qual conceituou em “O arco e a lira”, palavra (linguagem): “[…] é poesia em estado natural. Cada palavra ou grupo de palavras é uma metáfora. E, desse modo, é um instrumento mágico, isto é, algo susceptível de se transformar em outra coisa e de transmutar aquilo em que toca”.

Assim sendo, em cada Contação de Histórias a palavra, em seu movimento, estado poético e autonomia, vai fazendo seu jogo de significação, a fim de promover sentido na vida daquele que a recebe. Afinal, somos todos contadores de histórias.



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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