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20/10/2022 às 08h00min - Atualizada em 20/10/2022 às 08h00min

Binguinhas

IVONE ASSIS
Cresci ouvindo um e outro dizer “corta essa bandeira de feijão”. Não sabia o que era isso, mas doía mais que as batidas de pente que minha mãe costumava me dar todos dos dias, porque eu e o pente temos certa rivalidade. Não era falta de amor, pelo contrário, era amor demais. Ela queria ver a filha linda e penteada, para que as tias e avó dissessem “Que linda!” “Olhe os cachinhos” “Parece uma boneca”... e assim vai, porque família e bicho vesgo, só vê nossa beleza. Mas o fato é, quando criança, meu pente também era criança, então brigávamos abertamente. Ele me batia. Eu batia nele. Na adolescência, ficávamos sem nos falar por dias. Agora, já caminhando para a velhice, aprendemos a nos respeitar. Meu pente cresceu. Eu também. Não conversamos sobre o passado, porque o que passou não se muda, mas procuramos fazer o nosso papel sem ferir o outro.

Quando cresci, pude entender que não havia razão e nem desrazão naquela estranha convivência minha com o pente. Ele queria fazer bem-feito o trabalho dele, eu queria ser criança e minha mãe queria (e era) mãe.

Cresci e aprendi a separar joio e trigo. Descobri que há pessoas que só enxergam nossa beleza, há quem só veja a feiura, e há aqueles sensatos que veem os dois lados e nos abraçam, ensinando que isso é viver, mas também há aqueles insensatos que... ah, esses nem valem a pena, a questão é que a Literatura é uma amiga ímpar e tem resposta para quase tudo.

Em 2016, a escritora Rose Kern quis fazer uma homenagem a todas as garotas que, como eu, um dia sofreu porque alguém queria domar seus cabelos, ou sofreu porque faltava sabedoria naqueles de seu convívio, para entenderem que ser diferente não é ruim. Rose Kern publicou “A menina Rosa”, uma obra ilustrada por David Queiroz, ambos cariocas; ela, porém, com larga vivência mineira.

“A menina Rosa” apresenta 32 páginas de pura gostosura literária. Inicia-se como se iniciam as melhores histórias, “Era uma vez”; em seguida, vem a Menina Rosa, cuja descrição relata: “Ela era nem gorda, nem magra; nem alta, nem baixa; mas isso não importava. Era uma menina muito linda, que gostava de rosas e também de ler”, e seria sem dúvida a menina mais linda e feliz daquele momento não fosse um detalhe, a dúvida: “Só havia uma coisa que a incomodava: ela não sabia, ao certo, qual era a sua origem. Ela ficava mais incomodada ainda quando sua mãe cortava seus cabelos bem curtos, pensando que era mais fácil de cuidar. O que ela sonhava mesmo era em ter seus cabelos longos e enfeitados. Todos os dias, ela se olhava no espelho e ficava imaginando seus cabelos compridos com muitas contas coloridas”. Fora esses detalhes, ela era bem “feliz, pois sabia que era muito amada”. Melhor aluna da sala, cheia de amigas, a mãe era só amor...

Um dia, a menina Rosa teve uma aula sobre Diáspora Africana e descobriu as palavrinhas ANCESTRALIDADE e ORALIDADE. Aprendeu sobre a colonização, as diferenças, e a importância dos valores humanos, respeito, amor, e jamais ter preconceito... aprendeu sobre as riquezas culturais (Música, Arte, Culinária...) recebidas daquele povo que fora levado de sua pátria como escravos. “As histórias sabem coisas que a gente nem imagina”.

A partir daquele dia, os livros e a oralidade abriram um universo de saberes para a menina Rosa, que voou para os braços da mãe cheia de saberes e perguntas. A mãe lhe deu uma aula de amor e cultura e “ensinou-lhe que o valor de uma pessoa é determinado pelo seu caráter”. E quando Rosa, finalmente, compreendeu, disse: “– Ah! Agora, entendo por que meus cabelos são assim tão volumosos. Herança [...], mas também herdei beleza, inteligência, caráter e alegria”. A mãe achou graça da menina”. Riram alto.

A obra nos ensina que ser diferente não é sinônimo de ruim. E no quesito cabelo, Rosa descobriu que a realização de seus sonhos só dependia dela. Eu, há muito tempo, aprendi com meu amável Romeu que não preciso ter o cabelo de Rapunzel, a felicidade também mora dentro das minhas binguinhas.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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