Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90
04/10/2022 às 08h00min - Atualizada em 04/10/2022 às 08h00min

Um passeio-mergulho na Cidade Quimérica

ENZO BANZO
Foto: Divulgação
“Da cidade, que é corpo, sou alma”. Esse é um verso que cantofalávamos no primeiro disco do Porcas Borboletas, “Um carinho com os dentes”. O nome da canção é “Pele do asfalto”, imagem paradoxal que cola com piche aquilo que parece uma adesão distinguível: asfalto e pele, gente e cidade.

Quando li-vi o livro-imagem “Cidade quimérica” (Editora Subsolo, 2022), obra do coletivo RATAS, fiquei ouvindo em minha mente essa canção do Porcas. Sobretudo esse verso. Foi como se nos encontrássemos em alguma rua de Uberlândia, o céu vermelho no fundo do concreto, o sol batendo, desviando-se e criando alguma imagem despercebida e única para cada olhar. Cumprimentamo-nos em silêncio cúmplice. 

Cidade concreta, corpórea. Existiria essa matéria bruta sem a subjetividade que a constrói, mesmo quando levada pelos mais objetivos fins? Edificada para ser teto, circulação ou capital, a cidade – os corpos-almas que a habitam – se nega ao mero pragmatismo. O olho, o ouvido, o cheiro, o gosto, o tato acabam entretecendo sentidos e sensações para muito além da cotidiana mesma praça, mesmo banco, mesmas flores, mesmo jardim. Alma da cidade-corpo, o corpo-imaginação a recria, quimera cravada no real.

A arte visual urbana, da arquitetura ao graffiti, sempre me pareceu uma manifestação cultural que nega o simples utilitarismo das vias e cômodos. Um muro grafitado é uma intervenção na cidade que radicaliza a presença da alma no corpo, da arte na vida. Existe uma sem a outra?

As imagens construídas por Mariana Cortes e Laura Jager, artistas que, sob o codinome RATAS, assinam “Cidade Quimérica”, retêm e expandem esse gesto de intervenção da arte no real visível. Retêm, porque capturam a cidade para dentro das páginas do livro-imagem. Expandem, porque nessa quimera não há o espaço delimitado de um muro dentro da cidade; a cidade é que está dentro do muro-página e, nesse território, liberta-se de qualquer limitação, abre-se ao que a imaginação quiser misturar, colar, desordenar.

É divertido passar as páginas do livro à procura dos vestígios da Uberlândia cotidiana material: os tijolos da universidade, a esquina da Tubal Vilela, o coreto, o teatro. Mais instigante é abrir-se aos desdobramentos quiméricos inscritos por um outro modo de ver-ser, recriando a cidade como quadro dentro da tela. Na quimera, não impera nem a lei da gravidade. A mão recorta, o olho inverte. A que horas sai o próximo disco voador aqui desse coreto? Quando parte o próximo barco de flores do cerrado? 

Esse passar de páginas é um passeio-mergulho que convida ao retorno. Olhando de novo, uma nova percepção. Cada leitura cria uma narrativa que dispensa palavras; mas, quando surgem dentro da imagem, as palavras também estão ressignificadas, pelo gesto expansivo do poético: “seja bem-vindo”, “banca da felicidade”, “a magia acontece”, “pastelaria”, “mais economia”, “tentação”, “transporte escolar”, “pão 0,50”. Deslocadas, nenhuma diz somente aquilo que diria, em outra via. 

Na “Cidade quimérica” tudo tem outro valor, o lugar das coisas é estar fora do lugar. Esse outro olhar provoca e harmoniza, subverte e redispõe. Dá liga, dá cola. Fora do lugar, dentro da imagem, além da imagem, dentro da cidade, fora da cidade, dentro do corpo, além da imaginação, no fundo da alma. Concreta, despedaçada, redesenhada, revivida.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
Leia Também »
Comentários »
Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90