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02/08/2022 às 08h00min - Atualizada em 02/08/2022 às 08h00min

Kainã Bragiola: o isolado abraça o mundo

ENZO BANZO
“Retrato de um artista quando isolado” é o título do primeiro álbum de estúdio de Kainã Bragiola, que acaba de ser lançado, com apoio da Lei Aldir Blanc e do PMIC, pela Cena Cerrado Brasil. É um retrato, de fato, porque Kainã, além de músico e cantor, é artista visual: sua música é repleta de imagens, desenhadas no texto, expandidas com a sonoridade. É de um artista, no sentido amplo do termo, porque para Bragiola não cabe o limite do rótulo de músico, compositor, arranjador, desenhista, poeta: em seu trabalho, está tudo atravessado. E todo artista é, pelo menos em um primeiro momento, um isolado: afastamento do mundo que costuma implicar em aprofundamento de si próprio, labuta interna de onde emana a criação. 

Mas esse isolamento pressupõe, a seguir, o encontro; e a condição social de isolados nos tirou, de todos, esse aspecto essencial da troca e da comunhão que é estarmos juntos. A dor dessa ausência resume-se na simples evocação do abraço, que, de uma hora para outra, virou utopia, como canta Kainã em “Saudades”, faixa do disco que tematiza a pandemia de maneira explícita: “quando a gripe terminar / as cidades vão cantar / que saudades de você”. Não por acaso, essa é uma das poucas do álbum em que o intérprete não assina a autoria (que é de seu parceiro Matheus Bruno Neves). Grava o amigo como quem o abraça.

E Bragiola, nesse disco, quis dar um abraço no mundo para muito além do próprio braço. Convocou uma seleta trupe musical, porque o abraço de quem toca é juntar os sons. Daí termos um álbum de grande riqueza timbrística, de arranjos arrojados, de climas e sonoridades em que, do retrato do artista isolado em seu canto, a janela se abre e nos envolve. De dentro da casa, soa a cozinha cremosa de bateria (Vinícius Silva), percussão (Manoel Moura) e baixo (Rafael Pombo), a leveza harmônica do piano (Paola Felício) e do violão (Kainã), o voo melódico dos sopros (Henrique Albino). Tudo muito bem orquestrado pela produção de Bragiola e Lucas Roza, com espaço para participações vocais de Sofia Cupertino, Luiz Salgado e Fernanda Vital. Há ainda as vozes ocultas de alguns parceiros de composição, com o citado Matheus, além de Cleiton Custódio, Winellize e de mim mesmo, que tive o prazer de receber música de Kainã para um poema meu, “Fogo de Paia”.

Traço singular a ser destacado na poética do compositor é a sua percepção visual do mundo, quando o artista plástico se manifesta de forma mais evidente no poeta-letrista. O título da canção “Balada Azul” dá uma boa ideia dessa sinestesia, a qual se confirma no canto entoado em voz cristalina: “acontece, eu vi que acontece / o que era opaco começa a criar cor e fortalece / tempo de pipa, delícias de Lica, amoras colhidas reluzem furta-cor”. Esse tom imagético por vezes desponta em devaneio, que se desprende dos limites da lógica, o que já sinalizam os títulos de canções como “Capivaras rodopiando”, “Simone tens que voar”, “Canção do minotauro”.

Nesse território, a janela também pode expandir-se no sentido inverso, surpreendendo-nos, ironicamente, rumo às telas para as quais migramos em virtualidade, caso de “Estrela do átomo”: “sinto por dentro um tempo cinzento de grandes projetos sem fim / Estou ali – recortado na janela, recortado na janela, recortado na janela estou ali / Instagram estrelado átomo, quem fez uma poesia pra você? ”.

Nesse retrato cheio de aberturas, o labor que impressiona nos arranjos musicais nos conduz para um outro modo de olhar e ouvir o mundo, sentindo mais e vendo além. Assim Kainã Bragiola sintetiza o seu gesto, em que “quase tudo é encanto” na “sinfonia do desarranjo”. Entrando em voo pela janela, na casa do artista outrora isolado, a ele nos abraçamos, “unidos pelo contrário, reverso, avesso – contentes”.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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